‘Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo;
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.
Com dor da gente fugia,
Antes que esta assim crescesse;
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho inimigo de mim?
(Sá de Miranda)
Para Joana
Pois que trago a mim comigo, tamanho inimigo de mim.
Pois que trago a mim comigo, tamanho inimigo de mim. Acostumados que somos a responsabilizar o outro pelas mazelas da vida, acaba-se por desconhecer que é em si mesmo que pode estar a causa de tantas coisas. Entenda-se por outro, tudo aquilo que externamente responsabiliza-se como causa de um problema, de um sofrimento e podemos incluir aqui o marido, a esposa, os filhos, o chefe, o vizinho, a escola, o trabalho, a empresa, o plano de governo, o prefeito, o presidente, a chuva, o calor, enfim, tudo o que dá a idéia que é de fora a causa das dores de uma vida.
Pois que trago a mim comigo, tamanho inimigo de mim.
O grande problema é o quanto de desconhecimento um sujeito tem de si mesmo que o faz desconhecer sua implicação naquilo que sofre. Criamos as armadilhas nas quais inevitavelmente vamos cair e como não bastasse arranjamos uma tal de culpa que advém do outro como o criador da armadilha. Esse outro é mero ator a coadjuvar, tão ignorante de que na tecedura de uma teia sua participação foi recíproca. E dá-lhe culpa, dá-lhe acusação e dá-lhe vidas desperdiçadas nas teias construídas. Por quem? Pois que trago a mim comigo, tamanho inimigo de mim.
Há uma divisão interna no humano. Apesar de pensar-se um ser UNO, inteiro, na verdade a marca que define o ser humano é justamente a divisão. Quanto menos o sujeito puder perceber essa divisão mais fielmente acreditará que o outro é de fato responsável por suas questões, sofrimentos e angústias. Menos conseguirá enxergar as armadilhas que tece e nas quais acaba caindo. É claro que o outro participa de nossas vidas, mas imputar-lhe a responsabilidade por aquilo que é internamente subjetivo é dotá-lo de uma responsabilidade impossível de ser concebida. Por isso que muitas brigas revelam o grau de ignorância dos seres em contenda.
O trabalho da análise por sua profundidade pode ensinar muito a esse respeito. Pode ensinar o sujeito a escutar-se, enxergar-se, perceber-se e nomear as questões que até então o faziam sofrer por efeito daquilo que ignoravam.