Suicídio: Perspectivas Psicanalíticas e Antropológicas

Texto originalmente escrito para o livro: Suicídio - Abordagens Psicossociais Para a Prevenção, Ed. Juruá, 2019

O suicídio é um fenômeno de grande complexidade. Envolve as várias dimensões nas quais um sujeito está inserido. Tal ato convoca a sociedade para questionamentos importantes sobre os determinantes da vida. O que faz a vida se tornar insuportável para um sujeito é uma das muitas questões que precisamos formular para iniciar algum entendimento. O objetivo desse escrito é apresentar algumas linhas de questionamentos para que se possa investigar tal fenômeno de forma mais ampla, excluindo as sentenças simplistas, os preconceitos baseados em paixões. Revelar o quanto tais investigações precisam levar em conta as dimensões sociais contidas nos atos suicidas vai revelar o importante diálogo entre Psicanálise e Antropologia para se alcançar uma compreensão sobre as chamadas mortes voluntárias. Refletir sobre a existência no mundo contemporâneo é outro tema necessário para tal projeto. A partir do conhecimento e aprofundamento sobre a complexidade do suicídio pode-se pensar estratégias para prevenção. E afinal, prevenir o suicídio é possível?


E calcamos em nós, sob o profundo instinto de existir, outra mais pura vontade de anular a criatura.

Carlos Drummond de Andrade

Cada vez que acontece um suicídio estamos diante de um fenômeno que realiza um encontro dramático de várias faces da vida de um sujeito. Neste ato são convocadas as dimensões subjetivas, sociológicas, políticas, religiosas, antropológicas, todas ora concorrendo, ora somando esforços para compreender tamanha catástrofe.

Um suicídio representa a falência de alguma – ou mais de uma – dimensão humana. É certo que sempre aciona reflexões inquietantes naqueles que são próximos da vítima (ou devemos chamar de autor?). Afinal, o que leva uma vida e tudo o que essa palavra representa, a colocar fim na sua existência? Crê o suicida no fim de sua existência?

Há muito tempo o suicídio vem sendo estudado e o que notamos é que ele cada vez produz mais e mais perguntas, mais inquietações, mais dúvidas. São poucas as pessoas ao longo de história que se dedicaram a estudar o suicídio para alcançar uma compreensão de sua complexidade. Dessa forma, a grande maioria das pessoas tem uma visão um tanto quanto simples sobre ele, simples ao ponto de incorrerem em preconceitos contra o suicida e tecerem opiniões calcadas em sentimentos nem sempre esclarecidos. A. Alvarez no seu livro: O Deus Selvagem: um estudo do suicídio escreveu que “os processos que levam uma pessoa a por fim à própria vida são no mínimo tão complexos e difíceis quanto aqueles através dos quais ele continua a viver”.

Expressões como covardia, coragem, desistência da vida, fraqueza, falta de religiosidade, entre outras são acionadas para explicar uma ocorrência. Por certo não se trata de nada disso, e é bom começarmos a nos inteirarmos mais sobre esse tema, pois as estatísticas não param de denunciar os aumentos de casos em escala mundial. Faixas etárias onde não eram comuns as ocorrências suicidas agora alertam sua expansão. Comunidades antes marcadas pela vida simples e protegida, agora nos espantam com as notícias de que os casos de suicídios se tornaram motivo de medo e apreensão. O suicídio antes confiando a determinadas classes sociais e faixa etária, agora não exclui mais as divisões internas das sociedades e ocorre de igual forma.

Há sim os lugares onde as taxas são mais expressivas, casos como os países com maiores índices de desenvolvimento. É com perplexidade que constatamos que as maiores taxas de suicídio estão entre os países onde há alta escolaridade, alta renda per capita com justa distribuição de renda, sociedades que alcançaram algo grau de desenvolvimento intelectual, com bons índices de segurança pública e organização urbana.

Nesses parâmetros onde a sociedade parece estar em bom estado de integração social, vidas marcadas por um maior desenvolvimento do individualismo levaria a condições mais propensas ao suicídio.

Diferente disso são as comunidades onde a pobreza é característica. A pobreza protegeria os sujeitos por conta da idéia de dependência social que criaria modos mais integrados de vida social, ao passo que a riqueza criaria a idéia de que dependemos só de nós mesmos. Essa é uma hipótese que justificaria o fato de que as mais altas taxas de suicídio estarem entre os países mais ricos. A moral religiosa celebra a pobreza como uma nobre virtude, talvez por saber que nela a sociedade se protege de forma mais intensa.

Uma das explicações possíveis é a de que estes altos níveis de desenvolvimento e intelectualização contribuiriam para uma maior individualidade. Sabemos que a individualidade exacerbada nos meios sociais mais desenvolvidos pode conduzir a sentimentos de solidão e isolamento. Em tais circunstâncias os dramas subjetivos acabam não sendo resolvidos nos partilhamentos comunitários e sim no interior do próprio sujeito. É onde o suicídio se produziria com menos agentes defensivos contra ele.

Neste caso, o agente defensivo seria o maior grau de envolvimento social, do sentimento de pertencimento nos grupos, onde os dramas subjetivos podem ser partilhados e acolhidos.

Some-se a isso outro dado interessante que sempre foi muito apontado pelas pesquisas e estatísticas. Os índices de suicídio aumentam com a chegada da estação da primavera. Diferente do que se imagina, não é o inverno o tempo das maiores ocorrências. A explicação sociológica para isso é que na primavera a intensidade da vida social começa a se agitar e aqueles que estão à margem dos pertencimentos grupais potencializariam em si as mazelas de seu individualismo.

Estas conclusões estão contidas no livro O Suicídio, livro este que se tornou um clássico sobre o tema, escrito pelo sociólogo Émile Durkheim. Através do uso de resultados estatísticos ele analisa as sociedades européias no século XIX e propõe esse novo método de análise sociológica.

Nesta grande obra publicada em 1897 Durkheim prioriza o estudo da moral, propondo que as ocorrências suicidas são resultantes da moralidade de um povo dentro de um determinado período histórico e temporal. Uma perturbação das forças de integração moral levaria àquilo que ele chamou de anomia. Assim, os suicídios ocorridos nesse tempo revelariam os modos de estruturação social como método de compreensão do fenômeno.

Durkheim critica seriamente as análises que rasteiramente levam em conta noções como raça, clima, estação do ano, a loucura, a disposição orgânico-psíquica, alcoolismo, geografia, como causas para o suicídio. Diferente leitura se dá quando ele analisa a religião, a família e o trabalho por constituírem “locais” de intensa manifestação social de forma que a moral ali encontra meio de criar-se e transmitir-se de modo a acolher o sujeito nestas instituições e os protegendo contra o suicídio.

Assim, por exemplo, cada religião estará embasada em um grupo de representações morais diferente de outras religiões. Para ele, há religiões que favorecem mais a sociabilidade e integração do que outras religiões. Isso explicaria as taxas de suicídio diferentes entre religiões diferentes. Naquele tempo as estatísticas mostravam que os suicídios eram mais freqüentes entre os protestantes e menor entre os católicos. Ele escreve: Quanto mais numerosas e importantes essas situações coletivas, mais a comunidade religiosa é fortemente integrada; maior também é sua virtude de preservação. O detalhe dos dogmas e dos ritos é secundário. O essencial é que eles sejam de tal natureza que alimentem uma vida coletiva de intensidade suficiente. E é por não ter o mesmo grau de consistência das outras que a Igreja protestante não tem a mesma ação moderadora sobre o suicídio”.

A noção de integração social é muito importante na obra de Durkheim por isso, no que se refere à família, afirma que o casamento tende a proteger mais um sujeito por seu fator de integração. Ele afirma que “…o fator essencial da imunidade das pessoas casadas é a família, ou seja, o grupo completo formado pelos pais e filhos”.

Ainda quanto à integração, ele reduz a vida social nos seguintes termos: “Numa sociedade coerente e viva, há entre todos e cada um e entre cada um e todos uma troca contínua de idéias e de sentimentos e como que uma assistência moral mútua, que faz com que o indivíduo, em vez de ficar reduzido a suas próprias forças, participe da energia coletiva e nela venha recompor a sua quando esta chega ao fim”.

Uma situação oposta a esta da citação acima seria a cena para o suicídio se apresentar. Durkheim conclui que o suicídio está numa relação de dependência com as noções morais. Ele escreve: “É a constituição moral da sociedade que estabelece, a cada instante, o contingente de mortes voluntárias. Existe, portanto, para cada povo, uma força coletiva, de energia determinada, que leva os homens a se matar. Os movimentos que o paciente realiza e que, à primeira vista, parecem exprimir apenas seu temperamento pessoal são na verdade a conseqüência e o prolongamento de um estado social que eles manifestam exteriormente. Assim, as ocorrências da vida particular que são imediatamente associadas à causa do suicídio, são na verdade disposições morais da vítima, eco do estado moral da sociedade”.

Ele não exclui a subjetividade no ato suicida ao postular a causalidade na esfera social. Vejamos o que ele diz: “Cada suicida confere a seu ato uma marca pessoal que expressa seu temperamento, as condições especiais em que ele se encontra, e que, por conseguinte, não pode ser explicado pelas causas sociais e gerais do fenômeno. Mas essas, por sua vez, devem imprimir nos suicídios que elas determinam uma tonalidade sui generis, uma marca especial que as expresse. Trata-se de identificar essa marca coletiva”.

Tenho um bom exemplo para relacionar com essas afirmações.

Na minha pesquisa de mestrado em Antropologia Social, durante dois anos estudei uma comunidade cuja taxa de suicídio estava preocupante e os números de suicídio revelavam uma sombria situação cujas causas não eram entendidas. Os casos não estavam restritos a uma única população local. Muito ao contrário, tanto nas camadas mais simples daquela sociedade quanto nas mais abastadas as mortes por suicídio estavam espalhadas.

Dentre as várias dimensões sociais que tive contato, vou relatar uma aqui. Era o caso de uma comunidade rural, distante alguns quilômetros do centro mais urbanizado do município. Lá um fenômeno dramático estava ocorrendo. Senhoras com idade acima dos 65 anos estavam cometendo suicídio.

Diante de tal informação comecei a pesquisar a localidade. Entrevistei moradores, parentes das pessoas que morreram, enfermeiras(os) que atendem o posto de saúde local, assistentes sociais, o delegado da cidade. Tive também acesso aos Inquéritos Policiais resultantes de cada caso de suicídio e com eles, os prontuários médicos.

Todas as respostas apontavam para uma mesma e única direção. Havia uma palavra que parecia dar conta de explicar o fenômeno de forma simples e triste. Invariavelmente a resposta era: “ela tinha depressão”. A depressão se tornou uma palavra explicativa, diagnóstica, reducionista e simplificadora do fenômeno. Tais ocorrências não poderiam ser tão simples. A explicação aceita, a de que os casos de suicídio ali ocorridos eram por conta da incidência do diagnóstico de depressão conduzia a uma desanimadora e simples redução daquelas mortes a uma causa natural. Não bastasse o diagnóstico de depressão, essa depressão era explicada pelo viés funcional biológico, ou seja, tratava-se de depressão causada pela diminuição dos níveis de serotonina no cérebro. A serotonina é um neurotransmissor responsável por várias funções reguladoras de emoções no sistema nervoso. É verdade que sua carência é causadora de problemas funcionais e está ligada às afetações da ansiedade.

A explicação hegemônica baseada neste modelo nos coloca de diante de um difícil problema: encontrar respostas outras que nos levem à possibilidade de outros modelos explicativos de uma realidade exposta, bem como determinar a etiologia de um quadro patológico a partir de outros marcadores.

Naquele momento eu estava diante de uma triste conclusão individualizante: infeliz coincidência de casos de depressão causada pela diminuição dos níveis de serotonina no cérebro de um número considerável de senhoras acima dos 65 anos de idade. Até aquele momento ninguém havia ousado discutir esse diagnóstico tão pouco animador.

Não contente com tal explicação procurei por todos os métodos disponíveis elaborar questões e hipóteses que de alguma forma me levasse a outras explicações. Nada. Um vazio de falas. Todos “contentes” com o diagnóstico e com a causa mortis sentenciada pelo psiquiatra: Depressão! Alguns prontuários revelaram que o suicídio ocorreu durante a interrupção do uso de medicamentos psiquiátricos, outros que foi quando começou a fazer uso, outros que mesmo durante o uso de medicamentos de combate à depressão. Era fato que o uso em larga escala de medicamentos não estava contendo a onda suicida.

A única fala destoante dessa realidade foi uma informante que disse: “isso é coisa do tinga”. Tinga seria uma palavra nativa para referir a alguma força maligna que incitaria as pessoas a cometerem o suicídio. Tal informação não levou a nenhuma outra coincidência narrativa.

Desanimado e por força de ter que continuar a pesquisa em outras áreas da cidade, desisti de investigar essas ocorrências.

Mas, em se tratando de pesquisa de campo, os imponderáveis e imprevistos acontecem e com eles surgem as surpresas. Passadas algumas semanas eu fui visitar uma empresa, do outro lado da cidade, na região onde estão as indústrias. Enquanto entrevistava uma representante da empresa sobre as condições de trabalho, ela começa a me contar uma história sobre as últimas décadas da empresa. Disse que a indústria estava atravessando uma crise. Em outros tempos os funcionários que compunham a força de trabalho da empresa era formada por jovens que moravam nas zonas rurais. Os ônibus da empresa buscavam e levavam esses trabalhadores que ficavam um turno do dia na empresa. Ainda conseguiam trabalhar na lavoura em outro tempo. Tudo corria muito bem até que a concorrência com produtos mais baratos de outros países e as exigências de modernização nos modos de trabalho fizeram com aqueles trabalhadores já não fossem tão qualificados quanto era a exigência atual. Disse ainda que para não perderem seus empregos esses trabalhadores começaram a se organizar em moradias próximas da cidade, ao redor das fábricas, para poderem estudar e começarem a se capacitar para garantir seus empregos.

Diante disso começaram a abandonar os trabalhos e a convivência nos lugares de moradia anterior, a zona rural. Esse êxodo mudou drasticamente e de forma muito rápida a vida no campo. A base econômica rural foi cedendo lugar para o desenvolvimento das empresas.

Com isso, pude entender que aconteceu um fenômeno de ordem antropológica no município. E quem mais foram afetadas por essas mudanças, foram justamente as mulheres acima da idade de 65 anos. Elas agora perderam grande parte de sua participação na vida social. Não estavam mais à frente da casa com seus filhos à mesa, não praticavam as trocas de produtos produzidos na lavoura, não tinham mais lugar nas cooperativas. Elas sofreram uma rápida e terrível perda de função social. O manto social as deixou desprotegidas. O tecido social se afrouxou para elas. Essas perdas todas certamente não ficariam sem uma reação. Durkheim escreve: “O que o caracteriza é um estado de depressão e de apatia produzido por uma individuação exagerada. O indivíduo já não tem apego à existência, porque não tem mais bastante apego ao único intermediário que o liga à realidade, isto é, a sociedade.

Sabemos, desde a Psicanálise, que uma das várias vertentes explicativas da depressão é que ela é uma reação a uma perda. No lugar onde algo se perdeu o sujeito pode reagir através do luto, mas a impossibilidade do luto realizar a elaboração pode fazer com que surja uma formação patológica.

Agora sim, diante dessas novas informações e cruzamento de dados, foi possível estabelecer aquilo que não havia: uma ligação que permitisse compreender aqueles suicídios em seu conjunto. Foi possível ligá-los numa elaboração teórica consistente.

Houve uma reação a esses suicídios através dos agentes públicos de saúde e uma campanha de inclusão para essa população teve início. No começo houve resistência, mas após algum tempo os grupos de caminhada já contava com maior participação. Nestas caminhadas havia tempo de contar histórias, ler poemas, falar sobre problemas, restabelecer ciclos de trocas.

Com o tempo diminuiu a necessidade do uso de medicamentos psiquiátricos, diminuíram os suicídios, a depressão foi compreendida. Aquele terrível cenário de casos isolados de depressão pode ser substituído por outra lógica explicativa que permitia englobar as ocorrências antes isoladas.

O social está sempre presente e são suas representações que constituem o ideário suicida, mas a forma de apresentação da individualidade acima apresentada aponta uma possibilidade de análise calcada não nos extremos, mas na relação, num processamento de ‘naturezas’ distintas, o indivíduo e a sociedade. Cada caso, nesse sentido, pode ser analisado a partir exatamente da relação particular que o sujeito tem com a sociedade, desde é claro, que se proponha ver o fenômeno em menor escala ou num número delimitado de casos que torne possível o empreendimento.

O importante aqui é que o indivíduo deixa de ser um número numa tabela e os fatores emocionais podem ser levados em consideração. Não estaremos mais falando de um indivíduo, senão de uma pessoa, um sujeito e como tal, dos afetos, das paixões, dos projetos pessoais e do sofrimento que aqui são levados em consideração. Só assim poderá aparecer com mais clareza a que tensões específicas estão submetidos os sujeitos na relação interna/externa entre as noções morais internalizadas e como estas se posicionam na relação social.

Assim analisado, o fenômeno do suicídio tende a revelar justamente a tensão, o conflito, a anomia no local pesquisado. Isso permite perguntar o que torna, para certos indivíduos, a vida insuportável num dado local. A resposta, cientificamente produzida a partir dos discursos locais e também outras pistas deixadas por suicidas, nos levaria direto ao coração das representações que constituem a moral local, bem como onde esta moralidade sofre uma distorção patológica.

O exemplo acima deixa claro que não podemos prescindir de uma análise antropológica para a compreensão de um fenômeno tão complexo quanto o suicídio.

No que se refere à prevenção ao suicídio, de igual forma é preciso entender quais são os dilemas locais, quais as representações em ação, quais os conflitos sociais, quais os significados da vida para aquele determinado grupo de pessoas. Somente após essas indagações são possíveis medidas de combate ao suicídio, afinal as realidades diferem de local para local. Exemplo disso são os altos índices de suicídios entre as populações indígenas. Não podemos afirmar que essas mortes têm a mesma causalidade nas diferentes regiões do país. Cada etnia está localizada em áreas de sociabilidades diferentes, vive realidades diferentes e os conflitos que dão origem aos suicídios são também de ordem bastante distintas. Por isso não é possível falar de uma categoria como ‘suicídio indígena’, como se essa expressão desse conta de exprimir de forma geral as causas de suicídios entre todas as populações indígenas. O mesmo acontece com regiões diferentes, cidades diferentes e mesmo entre bairros diferentes de uma mesma cidade. O exemplo das senhoras idosas acima mostra bem isso. Os suicídios que ali ocorriam tinham uma explicação antropológica bem diferente da explicação antropológica dos suicídios entre jovens e adultos em outros bairros do mesmo município.

Ao se pensar uma campanha de prevenção, é preciso levar em conta essa realidade.

Aliás, até mesmo as patologias de ordem psíquicas precisam ser pensadas em seus contextos históricos. Sabemos que cada época produz formas diferentes de reação diante dos dilemas a que são expostos os sujeitos.

Exemplo disso é um fenômeno recente, estamos no ano de 2018, onde um jogo chamado de ‘baleia azul’, causou grande comoção pelo fato do tal jogo ter sido responsabilizado por suicídios e tentativas de suicídios entre adolescentes.

Esse jogo permite articular e adentrar um pouco mais o suicídio em suas dimensões subjetivas e sociais.

O jogo consiste basicamente no cumprimento de tarefas ordenadas por um curador, pessoa que virtualmente sugere que os jogadores realizem tarefas, cometam automutilações e por fim cheguem à última fase do jogo que é cometer o suicídio. No mundo todo foram relatadas mortes associadas ao jogo.

A questão que precisamos colocar é: por que pessoas querem jogar esse tipo de jogo? Ou, que força as captura ao jogo? Ondas e epidemias suicidas sempre aconteceram. Mas ficaram mais restritas por conta que a propagação era lenta, localizada.

Hoje a rapidez da divulgação dos casos nas redes sociais acelera o processo de divulgação e por conseqüência a imitação. O suicídio é fascinante e pode elevar aqueles que o cometeram a uma indesejada heroicização. Vou escrever sobre isso mais adiante.

Tem um sentimento de vazio muito grande nos adolescentes hoje. O vazio da falta de conflitos geracionais. O vazio das relações que são efêmeras e trazem angústia, o vazio pela agressividade generalizada, tanto nas redes, quanto nas escolas e nos grupos. Acredito mesmo que as vidas psíquicas estão com menos possibilidades de defesa. Menos recursos defensivos frente à castração, à angústia, ao vazio.

E quando vem uma \”Baleia..\” que promete um super sentido, suscita a coragem e pede provas, provoca comoção, tudo isso cria um ambiente propício para a criação de sentido e subjetividade. Esse me parece ser o fator especial nessa história. Diante do vazio, a excitabilidade da proximidade com o risco é um gozo que passa a ser precioso. Ao desafiar a morte tão de perto, ganha-se um sentido poderoso para a vida.

Capturado nas redes de um fenômeno – o jogo – envolvente, o Sujeito se vê tomado pelas regras. Cativo do gozo que cada jogada propõe, ele se entrega (de corpo e…psiquismo) ao prazer de cada etapa vencida. Aliás, passar de fase acaba por simular algo que justamente ele não consegue fazer. O que falta hoje são marcos para a passagem de fase. Os jogos, ao simularem essa passagem, conferem ao psiquismo a possibilidade de jogar o jogo da vida mesmo, por isso o jogo fica sério. E pode, e é perigoso. Menos porque o perigo está no jogo, mais porque encontra subjetividades desejosas de algum espelhamento que não devolva apenas o vazio. Esse Outro a quem se submetem para mostrar as fotos, a quem se submetem a provar que \”passaram de fase\”, é o Grande Outro insuficiente, contemporaneamente não mais sustentado nas ordens do sagrado, do parentesco, da genealogia. Essa submissão lembra um ter a quem obedecer, um ter a quem prestar um \’sacrifício\’. Não nos esqueçamos que o masoquista goza, não só com a dor, mas com a submissão.

Chama atenção que uma Baleia, representante da Natureza, seja escolhida para representar esse jogo. Elemento simbólico, por certo, mas que traz da natureza a força de uma metáfora vigorosa. Sua simbologia estaria associada ao suicídio pela fato dela encalhar e morrer. Alguns vêem nisso um ato suicida. Não é. A hipótese mais aceita é que elas podem sofrer alguma perturbação no seu sistema de geolocalização e por isso se perdem e acabam encalhando em praias. O antropólogo Lévi-Strauss afirmou que os animais são escolhidos para representar sistemas não porque são bons para comer, mas porque \”são bons para pensar\”.

Jacques Lacan falou da dor de existir e podemos entendê-la como o ponto onde um sujeito pode chegar após a desistência do desejo em reconhecer que teria sido melhor não existir. Não existir pode constituir um dos motivos que conduzem à morte de si e neste caso o suicídio é a expressão da desistência, a saída de cena. A relação entre suicídio e não existência é profunda. Uma vida marcada por uma incansável não realização de desejos, ou, melhor dizendo por um incansável não reconhecimento do desejo deixa a vida mergulhada no sem sentido. Um sujeito que não recebe do Outro uma chancela, um sinal efetivo como resposta à sua existência, pode cansar das tentativas de fazer seu desejo ser reconhecido e desistir de tentar. O sujeito está no mundo, está na vida, está inserido, mas não é escutado, não vê seus direitos serem respeitados, pode querer sair desse mundo. É aqui que ele começa o ensaio de sua saída da vida, do desprendimento das últimas amarras que o prendem à vida. Se puder ser escutado nesse momento, ainda se pode ‘salvar’ esse sujeito. Em muitos casos essas pistas são visíveis, noutros não, mas sempre estão ali.

Em oposição a isso, o sujeito pode resolver seu problema da dor de existir pelo viés do suicídio, mas aqui não no sentido da saída, da desistência da vida, mas, com seu ato suicida almeja convocar para si toda atenção quanto seja possível, convoca o Outro e os outros de forma dramática e se insere em suas vidas de forma dramática. Não é uma saída, é uma entrada. Não é uma desistência melancólica e sim uma entrada triunfante – e, por vezes, vingativa – na memória do outro, na existência do outro. Quantas vezes já ouvimos frases do tipo: ‘ele era tão quieto, não imaginava que pudesse se matar’, ou ‘ela parecia não ter problemas’, e tantas outras frases que revelam que aquele sujeito estava na vida sem muito entusiasmo, sem muito existir. Em artigo chamado O Suicídio Nosso de Cada Dia, a psicanalista Daisy Justus escreve: “Ao tentarmos nos posicionar frente à questão do suicídio, postamo-nos diante da questão do sujeito frente à sua subjetividade: instauração ou renúncia?”

Essa é a pergunta a ser feita: o sujeito instaura uma função, se inscreve no Outro ou renuncia à vida no Outro? Depende, é a melhor resposta, já indicando que cada suicídio guarda uma particularidade ainda que sua causa possa ser pensada em seu contexto social. Para continuar com nosso exemplo das idosas que se suicidaram, podemos conjecturar que algumas delas se mataram por não agüentar a dor de existir, por terem desistido de fazer seu desejo ser reconhecido e outras, ao contrário, reagiram à dor de existir dramatizando sua dor, denunciando sua condição, instaurando sua vida psíquica e se fazendo reconhecer, elas não desistiram da vida, elas desistiram da morte, da morte que a sociedade lhe impôs.

Quando o suicídio é precedido por uma culpa, o ato é de recuperação, de expiação. Ainda Daisy Justus: ”A autodestruição, uma vez levada às vias de fato, virá sempre atravessada por uma carga implícita de satisfação libidinal.

Nem sempre os suicídios deixam rastros claros sobre motivações. Na maioria das vezes sequer o próprio suicida o sabe, talvez ele apenas sinta. A falta de explicações, as ausências de bilhetes, cartas ou mensagens deixa para os familiares e amigos uma difícil herança, herança feita de vazios. É preciso compreender o suicídio como um ato que substitui as palavras, sendo o mesmo que dizer que sua autodestruição é um significado dentro de uma cadeia de sentidos. O simbolismo está no próprio ato e não naquilo que esse ato poderia querer dizer. Por isso muitos sobreviventes de tentativas de suicídio quando são indagados sobre o ato que cometeram, nada ou quase nada tem a dizer. Seu ato já é o dito. É o ato tomando o lugar da palavra, logo, não quer dizer outra coisa e sim, já é o dito. E, como tal, não precisa ser decifrado.

Ainda nesse sentido, o suicídio subverte a linguagem quando se trata de pensar a morte. Todas as formas de morrer podem ser apontadas como causas externas: morte por acidente, morte por bactéria, morte por infarto, morte por assassinato, morte por velhice, toda morte permite apontar uma causalidade que escapa ao sujeito, a morte lhe sendo imposta. O mesmo não se pode dizer do suicídio e dos suicidas. Sua morte não vem de fora, não se pode apontar uma causa outra, é o próprio sujeito o autor deste ato derradeiro. Nestes casos não se pode apontar nem o destino, nem Deus, nem uma fatalidade como autores da morte. Seu autor é o próprio sujeito. Isso causa imenso impacto nas pessoas ao redor pois tudo o que mais se teme, o que mais se quer evitar é justamente a morte e a lembrança de sua existência. Talvez seja ela a causa das grandes manifestações humanas, a tentativa de domar a morte, representá-la, construir uma alma que sobreviva a ela. Mas o suicídio subverte tudo isso. Não podemos aceitar sem uma dose grande de horror a idéia de que alguém vá ao encontro daquilo que se trata de evitar.

Por isso o suicida é um ser perigoso. Seu ato pode informar a alguns que ele teria conseguido vencer a morte, antecipando-se a ela. Ela mata a morte. Não lhe dá o direito de o surpreender. Não espera pacientemente sua chegada, antes, se antecipa a ela.

Tamanha complexidade permite enxergar que alguns suicídios são comparados a obras de arte. Uma pintura horrorosa. Uma escultura horrenda. Atribui-se a Albert Camus uma frase que diz: “Um ato como esse, é preparado no silencio do coração, como se prepara uma grande obra de arte.”

Há algo em muitos suicídios que nos permitem perceber um desejo de continuidade, nem sempre sendo a morte o que se busca no ato suicida. Cartas de despedida deixam entrever um projeto de usufruir da própria morte. Planejam e cometem o ato como se fosse possível estar presente para observar e viver as consequências do suicídio. Isso fica claro nos tempos verbais utilizados nas cartas de adeus bem como nos pedidos que fazem para o depois do ato. O sujeito não conta com a própria morte, não há como registrá-la, não existe sua representação no inconsciente, também não contamos com ela na ideação suicida. Duas frases me chamam muita atenção quanto a isso. Foram escritas por A. Alvarez, no livro “O deus selvagem”. A primeira é:

“Acredito que exista toda uma classe de suicidas que põem fim à própria vida não para morrer, mas para escapar de uma confusão interna, para clarear suas mentes.”

E a segunda: “Ele joga sua vida fora para poder, enfim, viver direito.”

Tais reflexões mostram como um suicídio pode revelar as contradições, dilemas e dramas enfrentados por um sujeito, dramas esses nem sempre visíveis, nem sempre de possível ajuda.

Muitas tentativas de suicídios bem como cartas de suicidas nos dão mostra da existência de traumas longínquos na biografia daquele que tenta ou se mata.

Um trauma é um acontecimento catastrófico que deixa uma quantidade de angústia não elaborada transbordando na vida psíquica. É característico do trauma o fato dele não conseguir ser esquecido, sobre ele o sujeito não consegue construir uma narrativa que lhe permita comunicar ao Outro seu sofrimento. Muitas vezes até tenta narrar mas o Outro não consegue escutar, por vezes o responsabiliza pelo ocorrido, gerando um desmentido e uma intensificação das culpas, medos , vergonhas, inibições que são comuns nesses casos. Muitas vezes a inibição pós traumática dura uma vida inteira, mudando os rumos da vida do sujeito que passa a silenciar, desvalorizar sua existência, não se expressar. Em outros casos o excesso pulsional conduz o sujeito a repetições do trauma, vê em si uma repetição da cena traumática, do encontro com pessoas e situações que de alguma forma reproduzam os sofrimentos passados. O trauma não passa e quando não é devidamente tratado pode levar o sujeito a desistir da vida, a não suportar ter que continuar a sentir a presença dos sentimentos terríveis resultantes do acontecimento traumático.

Há diferentes formas de trauma que podem gerar os efeitos acima. Os traumas sexuais marcados por sedução, abuso, violência sexual física e moral quando acontecem na infância deixam marcas terríveis pois em geral o agressor condena a criança a um pacto de silêncio, convocando nela o prazer e a deixando culpada. Muitos suicidas revelaram que quando eram criança sofreram abuso sexual praticado por um adulto. A culpa e a vergonha podem cobrar um preço muito alto que podem levar a francas atitudes masoquistas na vida até o ato suicida.

Outros traumas também podem ser encontrados nos relatos suicidas, tais como as violências sofridas na escola por conta de classe, cor, religião, peso, altura, identidade sexual, aparência física, marcar e cicatrizes, voz… um detalhe pode ser escolhido por um grupo para submeter um sujeito a uma rotina de xingamentos e humilhações. Essa prática que hoje vem sendo chamada de bullying pode ter uma reação por parte de quem a sofre de modo a não produzir um trauma. Porém, muitos sujeitos o sofrem em silêncio, não recebem atenção de pais e professores para colocar fim às agressões. Em tais casos, a revolta e a humilhação permanecem na esfera psíquica como um afeto devastador que não deixa o sujeito em paz. Tais casos podem conduzir o sujeito na vida adulta a se vingar através de atos brutais de descarga agressiva, como os atiradores de escolas. Mas em vez de dirigir a agressividade contida para o exterior ele pode agredir a si mesmo, matar o mal que nele habita.

Destino parecido tem outras formas de acontecimentos traumáticos tais como assaltos, violência física, atentados, sequestro. Lembremos aqui que muitos sobreviventes dos campos de concentração das Guerras Mundiais terminaram por cometer suicídio por não terem conseguido retirar de si os horrores sofridos.

As rupturas amorosas são outro tema de enfrentamento necessário quando tratamos do suicídio. As estatísticas dão conta de grande número de suicídios ocorridos pós uma ruptura amorosa. Em geral um dos cônjuges ainda está fortemente ligado à relação e não suporta aquilo que sente como abandono. Seu sentimento psíquico é de uma vida ceifada de parte de si mesmo. Nesses casos o suicida revela que sua vida estava sustentada emocionalmente na pessoa amada. Perdendo a outra pessoa, sente como a perda de si mesmo. A agressividade surge de forma muito intensa e não raro cenas de violência já eram marcas da relação que terminou. Quando a separação de fato ocorre, quando a outra parte da relação sai da cena do casamento ou da união que tinham, a agressividade surgida pode conduzir ao suicídio, tanto pelo desespero de suportar-se separado quanto pelo ciúme de imaginar a outra pessoa se relacionando em outra história.

Inúmeros são os casos em que essas histórias têm um rumo ainda mais surpreendente. Me refiro aos suicídios que são precedidos por um assassinato. Mata-se quem abandonou e depois termina com a própria vida. A impossibilidade de imaginar o outro ou a outra pessoa feliz, inteira, conduz o sujeito a uma forma de loucura em que uma divisão psíquica conduz a uma impossibilidade de conter a pulsão agressiva. Estamos diante de um momento patológico.

Acima fiz menção ao fato da heroicização. O suicídio tem um caráter chamativo, da idéia de um propósito alcançado. Tais efeitos poderiam conduzir outros a pensar ou a se conduzirem rumo a idéias também suicidas? Lembro que li um manual onde havia uma expressa recomendação de não promover a heroicização dos suicidas para não favorecer a transmissão de seu ideário. Deram a isso o nome de risco de contágio. De fato encontramos ondas suicidas causadas por algum evento desencadeante, em geral um suicídio ocorrido. O suicida teria vencido a morte, o que faria dele um herói a inspirar outros cujas idéias suicidas já tenham se apresentado ou que estejam passando por algum sofrimento sem conseguir imaginar uma alternativa.

Prevenção

Prevenir o suicídio é possível? No mundo todo campanhas de prevenção são realizadas nesse sentido. A Organização Mundial da Saúde elaborou um Manual que foi traduzido e distribuído pelo mundo todo. As empresas onde o fenômeno apareceu desenvolveram campanhas para combater o avanço dos suicídios. Populações vulneráveis aos aumentos de taxas de óbito por suicídio também criaram metodologias de ação. Apesar da validade de todas essas iniciativas o que observamos estarrecidos é que as taxas de suicídio estão num preocupante crescimento. Em algumas faixas já chega a ser a principal causa de mortes. Fala-se em mais de 1 milhão de suicídios por ano no mundo. Considerando que os registros de óbitos nesses casos são subnotificados, esses números não refletem a realidade do panorama.

Como pensar a prevenção ao suicídio num panorama tão complexo?

Para começar é preciso de instrumentos eficazes de leitura do mundo, de conceitos que nos permitam ler a realidade contemporânea com mais profundidade para podermos entender quais são as formas de inserção do sujeito no mundo, nas sociabilidades, os sentidos de suas vidas, os dilemas que enfrentam. Sem isso, as campanhas, manuais, programas de combate vão ser aplicados num campo inerte, com poucas chances de fecundidade.

Segundo o antropólogo Marc Augé em seu livro Os Não Lugares, o mundo contemporâneo vem impondo às mentalidades uma crise de referencias e reconhecimento. Ele define um ‘lugar’ como sendo relacional, histórico e identitário. Quando um espaço não confere ao sujeito a possibilidade de trocas simbólicas ele não é relacional, quando ele não cria memória e narrativas ele não é histórico e quando ele não confere um retorno de sua existência a partir da relação com o outro ele não é identitário. Portanto, quanto um espaço não é nem relacional, nem histórico e nem identitário, estamos diante de um ‘não-lugar’. O mundo contemporâneo com sua pressa e virtualidade cada vez mais tem criado não-lugares.

Quando analisamos a subjetividade de um sujeito podemos entender que ela se sustenta justamente na relação ao outro, na memória e na história de vida e no saber de seu lugar no mundo. Portanto, o lugar entendido dessa forma é fundamental para uma existência que sustenta no mundo. Sua falta produz o vazio e a falta de sentido tão presente nos relatos suicidas.

Prevenção aqui quer dizer criar Lugares, no sentido antropológico e psicanalítico. A falta de sentido para o vazio aterroriza o sujeito contemporâneo.

Inscrever-se no outro, essa é uma intenções do ato suicida. Se ele precisa de um modo tão dramático e letal para se fazer conhecer e ter seu desejo reconhecido, ter sua existência reconhecida, devemos nos perguntar o que pode ser feito para que ele não precise escolher essa forma de inscrição.

Há um dado alarmante que nos informa que mais de 40% dos suicidas procuraram algum serviço de saúde com alguma queixa uma semana antes de terem se matado. É estarrecedor saber que houve um pedido de ajuda e que não foi escutada. Mais alarmante ainda é o despreparo em que nos encontramos para receber esses sujeitos. Eles chegam ‘com alguma queixa’, portanto nem sempre com um pedido claro de ajuda afirmando que vão se matar. Relatam alguma dor difusa em alguma parte do corpo, relatam um aperto no peito, relatam um peso na nuca, relatam uma sufocação, relatam uma nuvem de pensamentos ruins… Cabe a quem os recebe transformar essa dor difusa numa frase que esclareça, que torne possível falar e pensar aquilo que para o sujeito é apenas dor e sensação angustiada.

Aqui, prevenção tem o sentido de fazer com que as palavras que dão nome a um sofrimento cheguem antes que o ato suicida produza um dito definitivo com a morte de si. Lembram que o suicídio é o dito, é o ato que toma o lugar da palavra? Daisy Justo escreveu no texto O Suicídio Nosso de Cada Dia: “…lembramos Lacan quando ele adverte que a sustentação do bem dizer é uma das saídas pra a dor de existir.”

As palavras têm o poder de produzir um sentido para a vida e poder transformar a dor de existir na alegria de viver. Passo complicado que não se faz com mágica ou sem trabalho. Esta continua sendo a aposta da Psicanálise num mundo tão marcado pelos tratamentos que excluem a subjetividade e as palavras, que excluem o desejo e seu reconhecimento, que objetalizam o sujeito transformando-o num indivíduo, naturalizado pelos diagnósticos e pelas formulações teóricas que o concebem.

É bom esclarecer que o sentido que se deve buscar para a vida não é sentido que aprisiona o sujeito nas estruturas clínicas, não é o sentido que congela o sujeito numa posição alienante, não é o sentido mortífero que congela o movimento pulsional. O sentido aqui é simbólico, aquele que permite ao sujeito usar das palavras para dizer de seu desejo, colocá-lo em movimento, fazer do imaginário um registro que estava a favor do viver.

O que se deve incentivar é que com o uso das palavras, do dizer, do bem dizer, do melhor dizer, o sujeito possa ter estratégias elaboradas de inscrever-se no mundo, fazer-se reconhecer, fazer cumprir seus direitos, lutar por eles.

Para existir não basta respirar. É preciso que o Outro me reconheça. E para isso preciso do uso simbólico que torne autêntico o poder de uso das palavras. Se falo e não sou escutado, então não falo, apenas verbalizo. Não basta ter um aparelho fonador funcionando para estar vivo, é preciso que as palavras alcancem, atinjam, afetem o Outro.

Afetar o Outro, esse parece ser um bom exemplo para exprimir o que quer dizer a palavra ‘existir’. Ações preventivas devem incentivar a fala. Mas para isso é preciso exercitar a arte da escuta. Sem escuta a fala cai num lugar infecundo, não produz seus efeitos.

Escutar é levar em conta a existência do outro, de suas dificuldades, de seus limites, de suas contradições. Escutar é difícil quando se quer impor ao outro uma verdade.

Escutar é difícil quando apenas a minha lógica é a correta. Escutar é difícil quando há muitos ruídos! Escutar é difícil quando o tempo me obriga a logo despachar a demanda. “É preciso tempo para entender o que o outro falou.”, nos ensina Rubem Alves em texto chamado Escutatória. E um Sujeito fala através de suas palavras, mas também através de seu silêncio, de suas escolhas, de suas paralisias, de suas enfermidades, de sua falta de palavras para expressar-se. Fala através de seus ódios descarregados de forma inadequada, da agressividade que denuncia sua condição. A indignação fala alto no interior de quem não pode falar, de quem não encontra um interlocutor.

Prevenção também inclui a dimensão do fazer parte, da inclusão. Não há como pensar em ações preventivas se deixamos de lado os projetos de inclusão. O cultivo das relações faz parte desse projeto. Num mundo cada vez mais individualista e onde grande parte das questões se resolver em aplicativos, estamos cada vez nos encontrando menos, falando menos, apesar de estamos mais ‘conectados e informados’. É preciso valorizar a importância do encontro, do cultivo das relações. Elas nos protegem quando sofremos abalos advindos dos maus encontros sociais.

O trauma pode ser narrado quando temos os grupos onde podemos circular e falar dos acontecimentos da vida.

Uma vez que sabemos que parte dos suicídios tem na sua pré história acontecimentos traumáticos relacionados a violências sofridas na escola por parte de outros colegas, parece justo propor programas de esclarecimento sobre essa prática que inclui a detecção dos agressores, identificação de sinais indicativos nas vítimas, acolhimento e encaminhamento adequado.

Por mais que se fale sobre o suicídio, sempre fica a impressão de que apenas tratamos parcialmente do assunto. Ele se renova, suas causas mudam, as culturas sofrem mudanças. Nas últimas décadas vemos aceleradas essas transformações sociais, sejam no aspecto tecnológico, sejam no que diz respeito às relações humanas e nas concepções do ser no mundo. Com estas transformações as reações subjetivas frente às novas realidades merecem constante revisão e novos conceitos. O suicídio, em profundo diálogo com os acontecimentos sociais, também precisa ser compreendido em seu tempo, sempre na tentativa de que possamos chegar um passo à frente de sua ocorrência.

Referências Bibliográficas

ALVAREZ. A. O Deus Selvagem: um estudo do Suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

DURKHEIM, E. O Suicídio ­ Um Estudo Sociológico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.

JUSTUS, Daisy. O suicídio nosso de cada dia. Estudos Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003


Livro - Suicídio - Abordagens Psicossociais para a Prevenção - Celio Luiz Pinheiro - Colaborador

Texto originalmente escrito para o livro: Suicídio – Abordagens Psicossociais Para a Prevenção. Organizado por Ana Claudia N. S. Wanderbroocke e Maria Sara de Lima Dias, Ed. Juruá, 2019

Célio Pinheiro (Colaborador)

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