Duas citações.
A primeira de Carlos Drummond de Andrade o título é: O Amor Bate na Aorta
…O amor bate na portão amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
…
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre pelo corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mão que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…
A outra citação é da obra O Banquete, do filósofo grego Platão. No referido banquete, Aristófanes toma a palavra e na tentativa de explicar o amor, ou aquilo que aproxima sexualmente as pessoas, diz:
A natureza humana original não era semelhante à atual, mas diferente. Em primeiro lugar, os sexos eram originalmente em número de três, e não dois, como são agora; havia o homem, a mulher, e a união dos dois. Tudo nesses homens primevos era duplo: tinham quatro mãos e quatro pés, dois rostos, duas partes pudendas, e assim por diante. Finalmente, Zeus decidiu cortá-los em dois. Depois de feita a divisão, as duas partes do homem, cada uma desejando sua outra metade, reuniram-se e lançaram os braços uma em torno da outra, ansiosas por fundir-se.’
Nos relacionamentos é muito comum encontrarmos frases e expressões do tipo: quero encontrar alguém que me complete ou alguém que me satisfaça plenamente. A grande pedra de tropeço está justamente nas palavras: completude, totalidade, satisfação absoluta e até na tal felicidade. São frases que depositam no outro a esperança e muitas vezes a responsabilidade por suprir aquilo que falta. O ardente pedido, o ardente desejo por atingir essa completude acaba confundindo-se com o amor.
As grandes brigas e sofrimentos nos relacionamentos são justo por acreditar que se tem o outro enquanto posse e que, portanto, pode-se perder. O que nos falta não é o outro, mas algo de nós mesmos. O corpo diz isso. Esse é o engano de Aristófanes relatado por Platão ao propor que é o outro que falta, a outra metade de si próprio. Essa insatisfação jamais será suprida pelo outro. O problema é acreditar nisso. Quanto maior essa crença, maior será a insegurança nas ausências da outra pessoa, maior será o ciúme, maiores serão as angústias relacionadas a perdas.
A razão dos dois trechos escolhidos é para mostrar que o corpo de cada sujeito tem suas marcas próprias, seus desejos, seus impulsos e que isso tudo é tão absurdamente particular que não há possibilidade de responsabilizar o outro por suprir tão complexos e exclusivos desejos.
Com o outro é possível fazer a diferença, usufruir dela, criar o amor.