A vida é uma passagem, passagem de uma idade a outra, de um status a outro, de uma ocupação a outra. A função das cerimônias é facilitar, simbolizar e marcar essas passagens, sejam elas nascimentos, infância, adolescência, noivado, casamento, gravidez, paternidade, iniciação religiosa, formaturas, funerais e outras tantas manifestações propriamente humanas.
“Os rituais revelam os valores no seu nível mais profundo… os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de expressão convencional e obrigatória, os valores do grupo é que são revelados. Vejo nos estudo dos rituais a chave para compreender-se a constituição essencial das sociedades humanas”.
(Turner, 1974, p.19)
Quão simbólicos são os rituais na atualidade? E aqui, entenda-se por simbólico aquela dimensão primeiramente referenciada ao Outro, constituinte do sujeito, no justo sentido proposto por Lacan:
“O significante produzindo-se no campo do Outro faz surgir o sujeito de sua significação. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito.” (Lacan, 1979, p. 197) Os rituais, hoje, têm valor e eficácia de referenciar sujeitos?
Os rituais têm por razão de existir o permitir que cada sujeito tenha condições de tomar sua posição nas ordens simbólicas a que deve responder: parentesco, sexualidade, obrigações, permanência dos laços sociais… Além disso, os rituais são desde antes e por excelência uma emanação da estrutura social. Os adolescentes, ao serem iniciados a outras fases de suas vidas através dos rituais, marcam psiquicamente essa mudança através do afastamento social, dos sofrimentos do tempo de separação, do festejo quando de sua reintegração e pelos presentes que recebe ou pelas marcas no corpo (tatuagens ou escarificações) que os identificam e ao mesmo tempo diferenciam.
Os rituais, resumidamente, compreendem 3 fases: separação, liminaridade (margem) e agregação ou reintegração.
A separação é a primeira fase de um ritual, onde aquele que será iniciado cumpre com obrigações de separar-se de seu meio cultural para ir “vagar” por um espaço e tempo diferentes de onde saiu.
É nesse espaço e tempo que encontramos a segunda fase do ritual que interessa aqui. Na fase liminar, o sujeito vai experimentar toda sorte de provações, pensamentos, ensinamentos, cumprimento de tarefas, que o farão retornar para seu meio cultural de forma diferenciada. Note que se isso se dá no plano da vida social, o objetivo aqui é destacar que essas experiências produzem registros psíquicos (conscientes e inconscientes) que doravante serão significantes referenciais para o Ser.
“…se a liminaridade é considerada como um tempo e um lugar de retiro dos modos normais de ação social, pode ser encarada como sendo potencialmente um período de exame dos valores e axiomas centrais da cultura em que ocorre”. (Turner, 1974, 202) Sem a liminaridade ou com a intensa diminuição em seu tempo – cuja observação é o que se pode afirmar estar ocorrendo nos dias atuais – diminui também o espaço e tempo para que a estrutura possa se movimentar e incluir os resultantes pensados e vivenciados enquanto se estivesse na margem, ou no tempo/espaço liminar.
Ainda se encontram culturas em que a liminaridade se produz nos tempos da adolescência e são marcados por fortes (e por vezes cruéis) experiências de sofrimento: invisibilidade social, submissão a regras de silêncio, surras, suportar o frio, nudez, privações de alimentos e água; tudo isso “tem a significação social de rebaixá-los a uma espécie de “prima matéria” humana, despojada de forma específica e reduzida a uma condição que, apesar de ainda ser social, não possui nenhuma das formas admitidas da condição social, ou está abaixo de todas elas. A explicação destes ritos é que para um indivíduo subir na escala social, deve descer às posições mais baixas.” (Turner, 1974 p. 205) Evidencia-se que essas práticas todas estão submetidas a um sistema de crenças, sejam elas religiosas ou míticas. O caráter sagrado e o sistema de crenças conferem a permanência e a observância das práticas. Hoje, cada vez mais secularizados os sistemas culturais, tais observâncias rituais encontram dificuldades de expressão e aceitação.
Aquilo que chamamos “castigo” pode ser pensado como um dos modos de permanência possível do período de afastamento que denomina-se liminaridade. O castigo seria uma fase liminar, tempo de separação, de reflexão, mudança e, após, o retorno ao convívio social ou familiar.
A hipótese que pretendo defender aqui é a de que, mais fortemente a partir da década de 1990 – com o advento dos meios virtuais – a liminaridade tem sido suprimida e com ela a dimensão de uma marca divisora do tempo também sucumbiu. Essa ausência de temporalidade que agora não marca um divisor psíquico, rouba do adolescente um importante ganho de acúmulo cultural: o período de margem, de isolamento social, do tempo para pensar e acumular coragem para ultrapassar a fase infantil e assumir um lugar diferenciado na ordem cultural.
Sem isso, fica condenado ao esforço de uma perpetuação do infantil em si e as tentativas de passagem que se lhe oferecem não suportam a inscrição de um tempo psíquico diferenciador. Some-se a isso, a transição em que vivemos: submetida ao imperativo do gozo imediato e à diluição do tempo nas redes sociais.
A terceira fase do ritual, a agregação, compreende o festejo onde o sujeito, após passar a fase de liminaridade, cumprir as tarefas a ela associadas e sofrer as desapropriações necessárias, retorna triunfante ao meio social, agora renascido com as marcas que o fizeram passar de um status a outro, de uma idade a outra, de uma função a outra. Terá acesso a atividades e uso de objetos que até então lhe eram proibidos, gozará de privilégios e assumirá responsabilidades.
Se antes o bater a porta do quarto e lá ficar por horas a fio remoendo a raiva dos “tiranos” pais marcava um limite ao espaço e tempo (diferenciadores), hoje, ato contínuo, o interior do quarto está povoado pelo acesso virtual das tecnologias modernas: msns, webcams, i-pods, e outras parafernálias, que diluem o efeito separador da liminaridade, suprimem o pensar a própria experiência, impossibilitam ao tempo inscrever seu recado no inconsciente.
Até recentemente ainda estavam preservados, com as atualizações decorrentes, muitos momentos rituais nas práticas cotidianas de vida: circuncisão, festas escolares, os rituais das missas católicas, a apresentação para o serviço militar, as práticas de iniciação sexual, a freqüência nos funerais (aliás, o tema da morte e seus derivados talvez tenha sido o terreno mais afetado pela desconsideração aos rituais), os momentos familiares de preservação de tradições, os batismos, os ensinamentos culturais e religiosos, os almoços de domingo, as brincadeiras, as visitas familiares, as férias, as formaturas escolares, os casamentos, só para citar alguns.
Esses momentos todos eram, quase sempre, ocasião de conflitos, de dramas onde eram colocados em ação os encontros diferenciais entre gerações, as diferenças de valores, e a passagem (por vezes obrigatória) a outras formas de se estar posicionado socialmente. Tais dramas eram resolvidos nas trocas de palavras, na imposição da autoridade, na expressão da agressividade, nos conflitos enfim, que marcavam campos ou territórios definidos onde as divisões psíquicas pudessem aparecer, onde as pulsões pudessem ser reconhecidas existindo, onde o recalque formava estrutura, onde os sintomas revelavam a existência de um sujeito.
Esse breve e por demais simples panorama veio dar lugar a outras formas de se incluir socialmente, onde a dor de existir (expressão de Lacan) não encontra forma expressiva no romance familiar, no embate geracional, na obrigatoriedade das passagens para outras fases da vida mediante arranjos simbólicos balizadores, marcadas que eram por momentos rituais, ainda que não se soubesse que a isso tudo fosse dado o nome de ritual.
Com grande generosidade conceitual e realística, Olivier Douville nos apresenta o texto Uma Melancolização do Laço Social, onde, referindo ao mundo de hoje, escreve:
“Como devemos ler a passagem entre o individual e o coletivo? Vários fenômenos psicopatológicos (toxicomanias, errâncias, crack, anorexias e bulimias massivas, violências adolescentes…) não devem mais ser considerados como sintomas neuróticos “clássicos”, nem tampouco como variações culturais de expressão dos conflitos subjetivos. A difusão deste gênero de dificuldades psíquicas, a dificuldade cada vez maior de fabricar conflito (e, portanto, de traduzir este conflito em sintoma) leva a designar uma certa forma de melancolização dos laços sociais e das formas da transmissão cultural de uma geração a outra. Dificuldade em situar o que se coloca como lei e, portanto, em se revoltar contra a lei”.
(Douville, 2004, p. 183)
Essas inobservâncias resultam nos inúmeros embaraços encontrados na clínica médica infantil e, também, na clínica dos fenômenos psíquicos, seu grande embaraço, não restando, dada à insuficiência simbólica que logramos alcançar, não restando senão o socorro (ou contenção?) químico, alargando o grande sorriso das indústrias que sabemos quais.
Mas e quanto à adolescência? A dificuldade de vetoriar as pulsões em função da inexistência dos momentos de encenação simbólica (ritual) acaba por desembocar no grande drama dessa fase, os tão conhecidos problemas com a identidade. Sem os aparatos suportadores e encenadores das crises e conflitos e, mais, concordando com Douville, a dificuldade de fabricar conflito, encontramos o adolescente sem palavras, sem expressão psíquica. Construir uma subjetividade é urgente. Analisemos:
As questões relativas à identidade que antes se referenciavam na verticalidade (no pai da horda) agora estão mais pulverizadas numa gama de ensaios de referência, frágeis e efêmeros; some-se a isso o declínio da importância dada aos rituais (recentemente ouvi a expressão “pai Google”) e constataremos que a urgência da identidade vai então buscar expressão na horizontalidade, nos laços que não referenciam a não ser por serem imaginários, colagens. O retorno da tatuagem e da escarificação, bem como os usos dos produtos promissores do gozo fácil, se apresentam então como alternativa última. Vemos uma fabricação de identidade condenada à fragilidade, deslizante, facilmente cambiável, uma verdadeira identidade no mal sentido da palavra.
Daisy Justus, em seu texto O Suicídio nosso de cada dia, escreveu:
“Encontramos hoje novas demandas e novas modalidades de expressão de sofrimento. (…) Com as inúmeras ofertas e avanços da psicofarmacologia, nega-se a causalidade psíquica diante do mal-estar, ou seja, o sujeito é excluído do enfrentamento de sua dor de existir: ele mantém o gozo e não experimenta a falta. A angústia é rapidamente eliminada pelo medicamento, pela droga ou pelo consumo. Trata-se do vigor do mercado do gozo.”
(Justus, 2003 p. 7)
Não se pode dizer que o suicídio seja da mesma ordem que as tentavas de suicídio, ainda que ambos sejam formas de expressão, portanto, o próprio dito. O suicídio nada tem a dizer, posto que ele já é o próprio dito e como tal, precisa ser entendido como um significante, numa cadeia. As tentativas de suicídio, na maioria dos casos, não jogam com a morte como meio expressivo, antes, permitem a escuta de um sujeito, que de duas uma: ou revelam o desespero e desamparo pela condição de abandono a uma angústia sem tréguas e sem capacidade de engate em algum projeto, ou revelam um ser assujeitado ao gozo que encontra na simulação de sua morte uma forma possível de contato com a linguagem até então ineficiente para colocá-lo diante de um outro que faça semblante a uma humanidade. Entre o desespero e o gozo, a dor de existir não se mostra no simbolismo do sintoma. A impossibilidade da metáfora (seja ela qual for) de lançar o sujeito num projeto de vida é mais dramática na adolescência e os motivos são muitos: a pressão por mudanças, as exigências das transformações corporais, a necessidade de sobrevivência, a permanência do infantil, as rupturas e crises parentais.
Parentesco, filiação, morte, cerimônias de casamento, batismo, tradições, cemitérios, não são apenas aspectos estéticos produzidos na cultura, são também formas de nortear, referenciar o psiquismo, de produzir sensações de pertencimento, de identidade, de existência, de ter onde repousar e fazer nomear a angústia. Aos adolescentes diante da desvalorização dessas representações psíquicas sobraram as fugidias identidades virtuais.
Volto a Douville:
“O humano, enquanto produção simbólica, necessita da fabricação ficcional da identidade e da alteridade. Esta fábrica da ficção que o torna humano não é um self-service. Ela nos institui muito antes do nosso nascimento, nas redes e razões de parentesco e de filiação. Não há, portanto, cenas íntimas que não tenham correspondência com o exterior, o que quer dizer que a fundação institucional do humano, o recalcamento originário, as invenções das regiões em totem e em tabu são cenas intra e trans-psíquicas. Sobretudo, elas precedem o real de cada sujeito que, a cada nascimento, se apresenta ao mundo.”
(Douville, 2004 p. 187)
Se não há cenas íntimas que não tenham correspondência com o exterior, estamos afirmando que o psiquismo está se constituindo a partir de um novo modelo? Um novo modelo que despreza a estrutura simbólica (no sentido da cultura) e busca referência na virtualidade, na supressão da temporalidade? Queremos entender o adolescente, olhemos para fora, para a obsolescência, para a virtualidade, para o efêmero, para a facilidade de matar o outro quando se o “deleta” da lista virtual e também para o medo de ser deletado. Frase desse tempo: “ele ou ela me excluiu do seu Orkut”.
O corpo projetado no suicídio, ou nas tentativas de suicídio, também parece corresponder a este virtual. Seria interessante repensarmos o Espelho como constituinte da imagem corporal. Afinal, ainda se pode dizer que se faz com o próprio corpo aquilo que se aprendeu vendo o outro fazer com o seu? Se assim o for, o que dizer de um espelhamento que não se dá primordialmente pelo olhar, mas pela imaginação do corpo do outro na era virtual? Eis os adolescentes, que sentem prazer nas relações sexuais virtuais, que namoram por mensagens, que projetam seu drama do ciúme na infidelidade das redes sociais e que, quando o encontro se dá, frente a frente, as tremedeiras precisam ser aliviadas pelas drogas e a potência sexual é garantida pelos estimulantes. A sexualidade está deixando de ser uma organização simbólica (Édipo) e está cada vez se constituindo numa necessidade fisiológica. Que corpo há aqui? Se abuso das citações, é porque há escritos que urgem serem lidos:
“…se o corpo social não se sustenta mais pelo mito, ele se reforça e se preconiza sob o aspecto de uma execução de prestações de serviços e de lógicas de inclusão em espaços econômicos e jurídicos… É doloroso, mas não raro, constatar a que ponto aquele que vive como que cortado, indigno, de toda reciprocidade, desliza com pavorosa rapidez para um estado de “não linguagem” e de “analfabetização” do seu corpo. A ponto de a própria certeza de ter um corpo (como propriedade e como responsabilidade) vacila.”
(Douville, 2004, p. 197)
Há mais a ser dito. Se o corpo não mais deixa entrever o registro psíquico e também seus conflitos, é porque o corpo está cada vez menos incluído na ordem do saber coletivo, quer se chame a isso de sagrado, social, cultural ou como gostamos de dizer, representação do corpo no inconsciente. Assim, o que vemos é que o organismo veio substituir o corpo, desprotegido que está daquela camada social e como tal, é no organismo que encontramos o lugar de manifestação patológica, distante do sintoma. Aqui quero propor também que a incidência do suicídio pode ser pensada na ordem psicossomática, no sentido proposto pelo Lacan ao falar da indução significante, que não é recebido e “digerido” por um sistema simbólico (o recalque), mas atinge o organismo abandonado à proliferação dos discursos inconsistentes de seu entorno.
No Brasil (em 2010), cresceu 31% a taxa de suicídios entre adolescentes, segundo dados da Unesco.
Em minha pesquisa de campo para o mestrado, onde trabalhei o tema do suicídio numa comunidade no Sul do Brasil (Pinheiro, 2007), pude experimentar esse drama do aparecimento e crescimento do suicídio entre os jovens naquela comunidade.
Muitos casos foram registrados como acidentes de trânsito. No entanto, toda a cidade ficou sabendo do envio de mensagens via celular em que os jovens se despediam, comunicando sua morte. O meio utilizado nesses casos foi lançar o carro de encontro a árvores.
Outro caso relatado é um suicídio por arma de fogo com dispositivo silenciador.
Em outro caso um jovem fez uma festa de despedida dizendo a todos que ia fazer um intercâmbio em outro país. Saiu da cidade, mas hospedou-se em um hotel de onde se jogou pela janela. Constatou-se que ele fizera reserva naquele hotel com bastante antecedência. Segundo relato de uma informante, ele possuía muitos amigos pela Internet e teria se despedido de todos, da namorada, dos amigos que gostava.
Carros, pistolas, precipitação de lugares altos, três formas de realizar o suicídio que se contrapõem com a forma mais comum localmente, o enforcamento. Jovens, solteiros, pertencentes a classes sócio-econômicas mais privilegiadas, moradores da região mais urbana da cidade, são também outros fatos a distinguir esses suicídios recentemente.
No entanto, algumas indicações podem ser apontadas. Armas com silenciador, Internet, carros possantes, intercâmbio, mensagens por telefone celular, parecem sugerir um caráter de modernidade a estas mortes e aos meios utilizados, o que permite enxergar um contraste com os meios ‘tradicionais’ de se cometer o suicídio.
Esses casos têm os espaços públicos como palco de sua ação. A morte é representada publicamente, numa encenação cuja compreensão dos significados relacionais ora começamos a compreender.
Ao refletir sobre os adolescentes, hoje se discute muito sobre os grupos, mas sabemos o que estamos discutindo? Uma pista: os agrupamentos antes eram referenciados pela fidelidade a alguma herança e hoje o que encontramos é uma afiliação narcísica. Isso muda toda nossa perspectiva. Seria isso um reflexo da moderna configuração do parentesco e a pouca durabilidade das alianças que configuravam um lar? Fidelidade ao lar, eis um tema para pensarmos.
Podemos pensar que falta ao adolescente hoje, o que, com Douville, poderíamos chamar de “densidade subjetiva”. Nunca se teve tão fácil acesso à informação, assim como também nunca se teve tanta falta de consistência lingüística.
O suicídio se insere nessa perspectiva como modo possível de criatividade e existência. Chamo Daisy Justus:
“Podemos ler no ato suicida uma investida radical e apaixonada de construção da subjetividade, questão fundamental que foge à compreensão do próprio sujeito no momento de sua execução. Ao tentarmos nos posicionar frente à questão do suicídio, postamo-nos diante da questão do sujeito frente à sua subjetividade: instauração ou renúncia?”
(Justus, 2003 p. 3)
O surgimento, depois o crescimento e agora os alarmantes índices de suicídio entre os adolescentes nos colocam na urgência de responder à questão: estes suicídios e as tentativas de suicídio são formas de instauração de uma subjetividade? Ou a expressão de uma renúncia a ela?
Comecei falando da liminaridade, esse espaço e tempo (um intervalo) onde podem se articular valores, leis, referências, decisões, aspirações, status que têm como efeito produzir identidade, agora no bom uso do conceito, faz surgir um sujeito capaz de orientar-se em relação ao seu próprio inconsciente, conforme propôs Lacan cujo contrário é a covardia. Covardia, mas também o medo.
Pretender o retorno às antigas práticas é uma ilusão a que não podemos nos deixar enganar. No entanto, estreitar a intimidade com a estrutura que subjaz essas práticas pode ser um modo possível de orientar a escuta clínica e as indicações para os praticantes da saúde.
Outras variantes se contrapõem ao processo ritual: uma sociedade narcísica suprime a liminaridade pela volatilização das relações, pela transgressão aos ritmos do tempo, pela inflação do imaginário. E a adolescência, tempo especial de rompimento com os laços infantis e de revolta com a parentalidade, encontrará primeiramente a necessidade de rápida acomodação do seu psiquismo. Essa tarefa tem de criar para si uma resposta que seja suficiente para processar de forma veloz o que fora de si já é veloz. Nessa tarefa, muitos sucumbem ao não conseguirem se deixar alienar, são os excluídos, outros sucumbem justo por rapidamente se deixarem ser pegos pelos ditames da ordem vigente. Outros ainda encontrarão abrigo em laços que consigam realizar. O que se pergunta agora é: em que lugar devemos esperar por esses sujeitos? Estaremos nós de alguma forma reproduzindo tudo aquilo que criticamos? Com que disposição psíquica precisamos estar para essa escuta?
O suicídio também é uma passagem, passagem de um ser social para outro ser social, passagem de uma ordem subjetiva a outra ordem subjetiva, passagem de uma identidade a outra. Muito pouco da morte está presente na morte voluntária. O suicídio é mais um projeto de vida que se utiliza da morte como meio e não como fim, meio de passagem, diga-se.
O preocupante assunto do suicídio na adolescência seria um substituo do declínio das funções simbólicas dos rituais e, mais, da supressão do tempo da liminaridade.
Referências:
- Douville, Olivier. Uma melancolização do laço social? Agora, RJ [online]. 2004, vol.7, n.2, pp. 179-201. ISSN 1516-1498. Site: http://www.scielo.br/pdf/agora/v7n2/v7n2a01.pdf
- Justus, Daisy. O suicídio nosso de cada dia. Estados Gerais da Psicanálise. Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003. Site: http://www.estadosgerais.org/mundial_rj/download/5c_Justus_41040903_port.pdf
- Lacan, Jacques, O seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
- Pinheiro, Célio L. Último ato? Estudo sobre a prática do suicídio em um município ao sul do Brasil. Dissertação Mestrado Antropologia Social, UFPR. 2007. Site: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/1884/16409/1/celio.PDF
- Turner, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.
Texto apresentado em 18 de setembro de 2010 na III JORNADA DA ADOLESCÊNCIA, organizado pela SERPIÁ, com o tema: Existe Adolescência Sem Risco?