O Mito da Unidade do Ser

Uma citação de Georges Bataille:

‘Jamais captamos o ser humano, o que ele significa, senão de maneira equivocada: a humanidade se desmente sempre, ela passa de repente da bondade à baixa crueldade, do pudor extremo ao extremo impudor, do aspecto mais fascinante ao mais odioso. Freqüentemente, nós falamos do mundo, da humanidade, como se houvesse qualquer unidade: de fato, a humanidade compõe mundos, vizinhos segundo a aparência, mas em verdade estranhos, uns aos outros; às vezes mesmo, uma distância incomensurável os separa: assim o mundo da ladroagem está num certo sentido mais longe de um convento de carmelitas do que uma estrela de outra. Essa incompatibilidade se concentra também em um só ser: na sua família, esse homem é um anjo pela sua gentileza, mas, a noite vindo, ele chafurda no deboche. O mais impressionante é que em cada um dos mundos, aos quais faço alusão, a ignorância, ou pelo menos o desconhecimento dos outros, é a regra. Mesmo de algum modo o pai de família esquece, brincando com a sua filha, os maus lugares onde ele entra como porco inveterado; ele ficaria surpreso, nessas condições, de se rememorar o sujo indivíduo que ele foi, infringindo todas as regras delicadas que ele observa em companhia de sua filha. ’

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Essa divisão interna do sujeito o faz assumir formas e posicionamentos estranhamente opostos em sua vida. Em alguns lugares e para algumas pessoas pode ser alguém amável, respeitoso, e, no entanto, em outros lugares mostrar-se sem escrúpulos. 

Pode ser alguém reconhecido por sua honestidade e confiança, mas que às escondidas comete apropriações indevidas, rouba, trapaceia. Ou ainda, um moralista religioso conhecido por seu caráter de rigor em princípios morais nas questões da sexualidade, mas, na calada da noite percorre os becos das cidades à procura de satisfação para sua ardente lascívia sexual, dando vazão às características mais condenáveis em seu próprio discurso moralista.

Um sujeito era famoso por sua brutalidade e truculência, sempre agressivo, revoltado, brigas constantes, parecia fazer questão de que as pessoas o olhassem como o mau. Pois esse sujeito em suas saídas solitárias procurava pessoas a quem ajudar, quer na rua, quer em trabalhos ou outras situações, mostrando-se uma pessoa dócil a prestativa. 

A realidade de cada um se compõe de mundos estranhos, contraditórios, que se repelem. Esse é também o tema do filme A Bela da Tarde onde uma mulher da aristocracia aproveita as ausências do marido e nas tardes se prostitui num bordel. 

Muitas pessoas não colocam em prática essa divisão atendendo aos apelos de satisfações tão diferentes, no entanto, as realizam em seu mundo de fantasias, criando personagens, identificando-se com outros. 

Esses pertencimentos a lugares e éticas discordantes e contraditórias geram conflitos internos, culpas e em casos mais extremos até a morte. 

Desnecessário dizer que essas condutas não precisam de julgamentos. Isso o próprio sujeito já faz além de cobrar-se uma pretensa unidade, acalentando o desejo de que esse lado sombrio de sua constituição se dissolva. O fato é que isso existe. Em cada um. Apesar de que sempre o outro queira nos fazer acreditar em sua bondade irrestrita, em sua honestidade inabalável, é bom saber que seu outro lado existe e que também cada um tenta fazer com que o outro acredite em si. O ser mente, dissimula, engana, acho que não porque é mau, mas porque precisa e por lhe ser próprio. Mas também cria, ama, fala a verdade, produz. Enfim… Viver mais, julgar menos.

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