No Lugar do Morto: Dos Riscos e das Identificações Possíveis na Pesquisa de Campo Sobre o Suicídio

Ainda que a morte sirva de constante fonte para pesquisas em várias disciplinas, é na antropologia que encontramos a situação mais dramática de confronto entre pesquisador e objeto, dado o caráter de aproximação (e as conseqüências) para com seu objeto, muito peculiar ao método antropológico. Este texto objetiva propor uma discussão acerca dessa relação entre pesquisador e objeto de pesquisa quando o tema é a morte, tendo no suicídio o modelo paradigmático dessa relação. 

Têm-se aqui a apresentação de uma parte específica da etnografia de uma pesquisa de campo para o mestrado em Antropologia social com duração de dois anos cujo tema versa sobre a ocorrência de suicídios em um município ao sul do Brasil. Destacarei em que a pesquisa com a temática do suicídio pode conduzir o pesquisador às mais diferentes situações. Será apresentada uma experiência etnográfica em que o pesquisador acompanhou um caso de suicídio desde as primeiras horas da morte até o enterro. 

O teor completo da pesquisa não será explorado aqui, senão um seu fragmento, importante no contexto geral, mas que serve para demonstrar o propósito desse escrito, que é o de revelar, exemplificando, como certos imponderáveis se apresentam na pesquisa de campo podendo fazer surgir a dimensão do risco para o pesquisador. 

Para clareza do argumento, passo logo à descrição dos eventos em sua cronologia.  Antes, porém, duas informações importantes:

  1. Eu acompanhei presentemente todo este caso desde as primeiras horas após ocorrido o suicídio, passando pelo velório até seu desfecho no sepultamento do corpo em um dos cemitérios da cidade.
  2. Ao descrever esse caso a análise do mesmo se confundirá com a apresentação da experiência etnográfica, uma vez que a participação do pesquisador interferiu decisivamente no curso dos acontecimentos após o suicídio.

Estando na cidade da pesquisa, fui chamado por uma informante que me disse: “quero lhe dar uma informação, mas não tenho certeza se ela é de todo correta. Hoje quando fui levar uma criança na escola, ouvi uma da primeira série comentar que um rapaz se suicidou. Não estou bem certa se uma criança dessa idade de mais ou menos seis anos sabe o que é um suicídio”.

De imediato fui à Delegacia buscar informações com o delegado com quem já conversara várias outras vezes. A Delegacia é quem primeiramente é comunicada em casos de suicídio. Ele confirmou a história e prontamente me encaminhou a uma sala onde, sobre uma mesa, estava uma pasta contendo as informações sobre o suicídio ocorrido naquela madrugada.

O comunicado ocorreu às 03h43m. O suicida registrou na carta deixada a hora em que a escrevia: “3 horas da manhã”. Tratava-se da carta de um suicida do sexo masculino, 48 anos, morador de um bairro do município da pesquisa.

Às 09:00 horas da manhã eu já tivera acesso à carta em questão. O delegado me disse para ficar à vontade para analisar os documentos e recomendou a uma secretária que me auxiliasse no que fosse necessário. Na pasta havia o Boletim de Ocorrência, constando as informações preliminares sobre o caso, nove fotos já reveladas tiradas no local da ocorrência, sendo quatro fotos de caixas de remédios, uma foto da cama de casal sobre a qual repousava o caderno onde ele escrevera a carta e quatro fotos do morto ainda pendurado na corda com a qual se enforcara.  Até agora me pergunto como essas fotos foram reveladas tão rapidamente.

Pedi à secretária que fotocopiasse tudo. Enquanto me despedia do delegado e estando eu já do lado de fora da porta da Delegacia, entraram uma mulher e um rapaz que se identificaram como a esposa e o filho do suicida. Vieram à Delegacia buscar a carta por ele deixada. O delegado disse-lhes que, como manda o procedimento, estes documentos são provas e até que se confirme tratar-se realmente de suicídio, esses documentos recolhidos devem ficar à disposição da justiça. Inconformado e abalado, o rapaz tentou enfrentar verbalmente o delegado e foi repelido.

Eu acompanhava de forma discreta essa discussão e enquanto a família saía da Delegacia, o delegado se dirigiu a mim e perguntou se eu queria falar com aquelas pessoas, já que se tratava do caso de um suicídio. Respondi afirmativamente e me encaminhei com a família para fora dos portões da Delegacia.

Nesse momento, resolvi voltar e perguntar ao delegado se eu poderia revelar para a família o conteúdo da carta. Ele disse que sim, “claro, você é preparado e instruído para isso”. Assim, saí a caminhar por uma praça e tentei ler a carta para a esposa e filho do suicida que me pediram uma cópia da mesma, pois o falecido tem outros filhos e vários irmãos que iriam querer também ler a carta. Expliquei que não obtive autorização para fornecer cópia da carta, mas tão somente revelar o conteúdo da mesma.

Entendendo o drama familiar naquele momento e sabendo que o conteúdo da carta traria algum alento e consolo para os familiares, me propus a ir até o local do velório mais tarde e reunir a família para que todos pudessem saber do conteúdo da mesma. Agindo dessa forma eu ficaria seguro por não estar correndo nenhum risco de obstruir os trâmites da justiça, bem como não entraria em conflito de nenhuma natureza com as pessoas da delegacia, em especial os delegados que até então haviam sido importantes informantes para a pesquisa. Eu não poderia entregar a carta, mas tinha autorização para comunicar seu conteúdo. 

Tomei nota do endereço onde aconteceria o velório tão logo o corpo fosse liberado do IML. Me despedi da família e estávamos a sós agora, eu e as palavras do morto, a carta que sobre minha mão tinha um peso difícil de avaliar. Fui tomado por uma sensação muito estranha, de estar sozinho e ao mesmo tempo acompanhado.

Nunca antes se materializara de forma tão surpreendente a força viva que carregam as palavras. Era apenas papel com escritos. Mas ser o portador das idéias ali contidas tinha um peso. Eu era o único que as possuía e aquelas palavras eram tudo o que havia restado de vivo daquele que se matara. O corpo estava já condenado ao não-senso, mas restavam vivas, em minhas mãos, suas palavras.

Aquele papel pulsava, respirava, falava, tinha peso e produzia a nítida sensação de uma presença, a presença do sentido de uma trajetória, a presença do sentido de uma morte. A carta só ganha esse sentido de peso, de indicar uma presença, por ainda não ter cumprido com sua missão, de revelar aos vivos as palavras derradeiras do suicida.

Restava viva ainda aquela carta porque a configuração surgida do meu encontro com aquelas pessoas assim o fez. Ela não tinha um sentido em si, mas passou a ter, à medida que diante dos outros que não sabiam de seu conteúdo, eu me tornei portador das palavras que ali estavam.

O fato de não poder simplesmente entregar a carta, me tornou um portador e me remeteu a um lugar subjetivo de mediador compulsório de uma situação surgida sem a intenção de ninguém. 

Ainda receoso por estar com a cópia da carta e com o receio também de perdê-la (o que a levaria a parar em local incerto), tomei uma decisão: peguei uma caneta e copiei a carta em outro papel e deixei a fotocópia no Hotel em segurança.

Pronto, (e só depois me apercebo disso) agora as palavras do morto têm a minha letra. Seria agora eu um morto vivo? Quão estranha fronteira da alteridade fora superada! Quão estranha mediação eu havia me transformado! Nesse instante percebi que não havia mais como recuar, a situação havia me tomado por completo. 

Fui ao velório. Lá chegando, descobri algumas coisas:

  1. O corpo ainda não havia chegado do IML
  2. Nem todos os filhos do suicida moravam na cidade. A filha mais velha demoraria mais três horas para chegar.
  3. Eu era esperado no velório por ser o portador da carta.
  4. Havia uma confusão quanto à minha identidade.
  5. Um velório é um lugar onde as notícias se espalham de forma muito rápida.

A esposa do falecido fez uma confusão ao tentar explicar quem eu era, isso antes da minha chegada no velório. A confusão consistia no seguinte: quando nos vimos pela primeira vez, ainda na Delegacia, eu me apresentei a ela e ao filho dela como alguém que estava na cidade ‘investigando’ casos de suicídios.

Quando ela falou a meu respeito para as pessoas do velório, disse que “um investigador da Delegacia iria chegar trazendo a carta”. Assim, quando cheguei ao velório notei que olhares discretos e até assustados se dirigiram para mim e por mais que eu tentasse ninguém conversava comigo.

Por fim, um rapaz, estudante de direito, se aproximou e me perguntou o que a polícia tinha a ver com aquele caso e porque eu estava com a carta do falecido. 

Desfiz logo a confusão e até rimos da situação. O rapaz se afastou de mim e em minutos o problema com a minha identidade estava resolvido. Fico impressionado com a velocidade com que a informação correu e atingiu todas as pessoas presentes e espalhadas dentro e ao redor da casa. Já havia perto de cinqüenta pessoas quando o corpo chegou para ser velado.

O suicida vinha de uma família de quatorze irmãos, de forma que o número de parentes no velório só fazia crescer. Muitos de seus irmãos e outros parentes se aproximaram de mim para saber o conteúdo da carta, pedindo para vê-la.

Como eu recebera um pedido de alguns familiares para que a carta não fosse mostrada até a chegada da filha mais velha do morto, posto que ela poderia não gostar de que a carta fosse lida antes de sua chegada, tive que contornar a situação por várias horas. 

Enquanto essa filha não chegava e, portanto, o conteúdo da carta não havia sido revelado, o clima no velório era tenso. Reinava um ar de incompreensão e até revolta para com o ato cometido pelo suicida. Através dos irmãos fiquei sabendo de detalhes da vida do morto. Sua história começava a ser contada. 

A leitura da carta era o clímax que todos esperavam, ansiosos. E também eu queria que aquele momento chegasse logo. O peso do ‘poder’ começava a incomodar. À medida que as horas passavam, o momento da leitura da carta se afigurava como podendo acontecer a qualquer momento. As pessoas tinham olhos para mim e qualquer gesto ou movimento que eu fizesse podia indicar que eu iria ler a carta. Como ninguém queria perder esse momento, ficavam vigiando meus movimentos. 

O velório aconteceu na casa do suicida. O caixão foi colocado na mesma sala onde ele se enforcou. A intenção do morto era que todos os filhos viessem a morar na casa depois de acabada, conforme disseram os familiares e conforme também consta da carta que ele deixou.

Por fim, com a chegada da esperada filha, todos os olhares uma vez mais se voltaram para mim e, antes que eu fizesse sinal que entraria, todos os presentes entraram na casa, como que a tomar um bom lugar para não perder a leitura da carta. Umas das irmãs do suicida veio até mim e comunicou que eu poderia começar a leitura da carta. Toda essa situação me lembrou de um processo ritual onde cada participante sabe exatamente o que fazer e quando o fazer. 

O que a princípio deveria ser uma leitura para os parentes próximos da vítima, tornou-se um evento público, dada a expectativa gerada não só entre os parentes, mas também entre os vizinhos.

Uma configuração espacial merece aqui um destaque. Como a casa era grande e o número de pessoas era expressivo, a leitura da carta deu-se numa das salas. Coloquei-me, ou a própria situação me colocou, no centro da sala de forma a poder ser visto e escutado por todos. Assim, começo a leitura da carta após uma vez mais explicar a todos quem eu era, porque eu estava com a carta e porque simplesmente não entregara uma cópia da mesma aos familiares.

Quando olhei para um dos lados, notei que a sala onde repousava o caixão estava vazia. Fui tomado por um sentimento estranho. Posso analisá-lo por dois vértices.

Um, psicológico, que diz respeito à forma de identificação especular com o outro, neste caso representado pelo corpo e pelas palavras do morto.

Essa noção de identificação é importante de ser analisada pois sua forma de constituição e ação são inconscientes. Nem sempre um sujeito sabe com quem ou com o que está identificado ou com quem está se identificando. E também é comum que não reconheça como pertencendo a outrem uma característica que julga lhe ser muito própria e particular.

Em se tratando da temática da morte e mais especificamente do suicídio, poderemos ver um risco surgir na medida em que o fenômeno do suicídio puder se tornar para o pesquisador uma fonte de identificações.

Sobre essa questão, de uma situação se apresentar como risco, é interessante notar que há em jogo muitos mais elementos simbólicos numa dada situação do que podemos perceber. Apesar disso, efeitos de linguagem podem ser tornar eficientes às expensas da intencionalidade de um sujeito em particular.

O que quero dizer é que certos eventos fazem com que a linguagem crie efeitos emocionais inesperados para os participantes. Retomar a noção de Eficácia Simbólica conforme proposta por Lévi-Strauss ajudaria a melhor compreender estes fenômenos.

O outro, social, é dado pela visão aglomerada das pessoas, ávidas por ouvir. Era a própria materialização do social, representações buscando representações. Enquanto as palavras do morto não fossem ouvidas, ele não poderia morrer. É o que acontece nos casos de suicídio. O morto só morre quando sua decisão de matar-se atinge algum sentido para os que ficam.

Esse sentido é manifesto através dos bilhetes, cartas ou pistas deixadas pelo morto. Quando este não as deixa, as pessoas procuram em sua história de vida possíveis explicações para a decisão de matar-se, como doença, fracasso, solidão, separação, etc.

Nos casos em que o suicida não deixa bilhetes ou cartas e que parece ter uma vida sem grandes marcas aparentes de sofrimento, a estranheza permanece por mais tempo.

A leitura da carta, ou o evento, desde que eu comecei a ler, durou aproximadamente quarenta e cinco minutos. Teve essa duração porque, na carta, o suicida se dirigia pessoalmente a várias pessoas, desculpando-se, fazendo recomendações, expressando seu amor, sua dor e despedindo-se.

A cada pessoa citada na carta, havia uma pausa, posto que esta se emocionava, chorava, explicava alguma coisa. Só então eu continuava a leitura. Estas pausas de choros e comentários foram importantes como modo de cada um assimilar as palavras, bem como, agora sim, poderem chorar um pranto com mais sentido, um pranto cujas razões agora foram explicadas.

Aqueles que até então não haviam chorado, o fizeram nesse momento. Alguns trocaram as expressões revoltosas de antes por expressões de pesar sobre o ocorrido. As manifestações (mesmo dissimuladas) de revolta e incompreensão dissiparam-se, dando lugar a um clima de serenidade ao velório.

Na manhã seguinte, após algumas horas de descanso, retornei ao velório, desta vez para acompanhar o enterro. 

Durante todo o velório um carro e um guarda da polícia estiveram presentes. O cortejo partiu da casa em direção ao cemitério. Segui-o com meu carro. Fiz parte do cortejo. Uma cena me chamou atenção e também me emocionou, talvez só a mim.

A polícia militar fechou todos os cruzamentos das ruas com cones desde a casa até o cemitério, de forma que o cortejo não fosse interrompido nesses cruzamentos. A distância entre a casa e o cemitério é de aproximadamente três quilômetros.

Nesse momento do trajeto penso na carta e concluo que com seu ato, o suicida conseguira parar o Estado, mobilizara a cidade. Fez-se ver, se fez notar, se fez escutar. Imagino que as pessoas que acompanhavam o cortejo apenas vissem ali a polícia fazendo seu trabalho. Mas eu estava ali para ver mais. Por fim ele conseguira aquilo que na carta deixa claro não ter conseguido: ser sujeito e não apenas mais um indivíduo.

A sociedade se reúne nos velórios. Na morte de um suicida, é o próprio suicida quem convida ou provoca essa reunião da sociedade. É um ato da cultura conclamando as pessoas a se reunirem, diferentemente de uma morte por doença onde é a natureza que mostra sua força de reunir as pessoas.

Se nas mortes onde nada se poderia fazer para evitar (acidentes, doenças) os comentários nos velórios ressaltam justamente esse caráter arbitrário da morte e a natureza como determinadora do destino, no caso do suicida, o mesmo não se dá. Não cabe num velório de suicida expressões do tipo: “basta estar vivo para morrer”, “quando Deus chama”, “foi Deus quem quis assim”, e principalmente, “a hora da morte a gente não escolhe”. O suicida subverte a ordem, subverte a natureza e coloca a morte sob seu controle, não permitindo que sua morte seja atribuída à imponderabilidade, nem ao destino, nem a uma divindade. Ele decidiu. E isso certamente é dramático para todos. 

Tal decisão, a do suicídio, parece revelar a posição de um sujeito de ter a liberdade de dispor de sua própria vida a ponto de acabar com ela, mas a dar crédito tão somente a isso, seria propor um entendimento pouco relacional para o fenômeno. Ao se matar, como o demonstra os dados etnográficos, o suicida convoca e mobiliza uma série de representações sociais ao mesmo tempo em que força a sociedade, através de seus atores, a dar ouvidos ao mistério contido na sua morte. Uma pessoa moral se constitui aqui, a pessoa do suicida.

O suicídio nesse sentido é uma fala e ao ser escutada (ainda que interpretada de formas diferentes) tal fala também contribui para a construção do indivíduo como pessoa. É uma passagem dramática, cujo preço é a morte. Todo suicida se constitui e faz ressaltar o fato moral de sua constituição. 

É sobre esse caráter chamativo, que transmite a idéia de um propósito alcançado, para além da estranheza com a dor, que é preciso nos determos. Tais efeitos poderiam conduzir outros a pensar ou a se conduzirem rumo a idéias também suicidas?

Lembro que li um manual onde havia uma expressa recomendação de não promover a heroicização dos suicidas para não favorecer a transmissão de seu ideário. De qualquer forma, mesmo sem a intenção de heroicizar, o suicídio reclama para si luzes mais fortes. 

Do que foi escrito até aqui podemos compreender o sentido através da leitura da carta deixada pelo suicida: 

2 horas e 30 minutos da madrugada. Este é o fim de um bom trabalhador e lutador. 

Não é o câncer que vai me matar e fazer sofrer  como eu vi tantos morrer sofrendo dia e noite. 

Adeus. O pai ama todos vocês meus filhos. Peço um caixão barato com poucas despesas. 

Reconheço que ____ e ______ é minha filha. 

Tenho cinco filhos, sendo

 ____, 

_____, 

_____,

_____, 

_____ . 

Vivo separado a ______ . 

Vivo a muitos anos com a _____ .

Deixo minha opinião.

Gostaria que ____e também ________ ficassem com o uso fruto da casa e para osfilhos dividirem partes iguais. Adeus. Fulano de Tal.

Eu Fulano de tal tomei esta atitude que sei que não devia fazer mas eu estou sofrendo muito.

Sinto dor de estomago dia e noite e dor de cabeça. Peço que todos os meus filhos me perdoem. 

Estou cansado de correr procurar ajuda médica e eles diz que nada pode fazer por mim.

Estou trabalhando com dor. Não tenho mais condições de  trabalhar, também não quero ficar sofrendo oito a dez meses sem poder comer e na agonia da morte sofrendo e fazer a família sofrer. 

Não consigo me encostar pelo SUS nem me aposentar mesmo por pouco tempo de vida. 

Adeus. Fulano de tal. 

Adeus de quem tanto ama vocês. Fulano de tal.

Peço que Deus me perdoe. Deixo a minha solidariedade a toda minha família.

Sobre a construção eu sei que o juiz vai fazer o melhor que puder.

Um abraço para minha filha ___. Um beijo para a _____. Cuide bem.

Um abraço para a ___ . Um abraço para o ___ e o filhos. Cuide bem dele. Um abraço para o ____. Juízo e te cuida.

Um abraço para o _____. Um abraço para o  _____ .

Um grande abraço para o ______ .

Aqui deixo meu abraço para _____  e  _____ .

Deixo um abraço para _____ e ____ o pai ama todos vocês. Beijos. 

Deixo um abraço a todos meus familiares e vizinhos e amigos. 

Estou em paz comigo e meu coração.

Peço desculpas e perdão por todos meus defeitos.

Que vocês possam me perdoar. Eu sei que nunca fui ruim mas meus problemas de saúde me assim. 

____ o pai ama todos vocês. De coração. 19.08.2005.

19.08.2005. 3 horas da manhã.

O que eu tiver para receber do carro também do meu pagamento da firma quero que fique para a ____ pagar as despesas. 

Falar com o Dr. _____ do Sindicato.

Também ____ falar com o Dr. ___ ___.

Falar também com Dr. ____ sobre a pensão da nona

Peça para eles te guardar. 

Fulano de tal. Adeus.”

Nesse “evento” as circunstâncias colocaram o pesquisador no centro dos acontecimentos por ter sido o único a ter acesso à carta deixada pelo suicida, carta essa que a polícia local não entregou à família. Assim, o pesquisador se fez portador das palavras do morto vindo a ocupar lugar central no velório por estar de possa de suas palavras. As noções sobre indução significante, identificação e uma articulação dessas situações com conceitos psicanalíticos podem ser de um rendimento teórico até agora pouco explorado. 

Ainda sobre a questão dos riscos e pensando na eficácia simbólica como ‘força’ do símbolo a reordenar os fenômenos, fica a impressão de que a experiência de campo precisa também sofrer uma relativização. Pensando no aspecto risco, a eficácia simbólica age no sentido de anular possíveis efeitos de indução no pesquisador à medida que este puder submeter sua experiência à fala. 

Há em psicanálise uma noção conceitual importante dentro da compreensão das doenças psicossomáticas que é a noção de ‘indução significante’. Traduzindo aqui de forma simples, a indução é a ação do significante agindo diretamente no corpo causando alguma forma de patologia. Situação diferente é quando o sujeito é exposto a um enxame significante e este ‘é recebido’ por uma posição subjetiva que o digere e transforma.

O fenômeno psicossomático é da ordem de manifestações automáticas do significante que não são subjetivadas, tomando o corpo como forma de expressão. A aproximação que proponho aqui é que certos temas quando estudados no formato da pesquisa de campo aproximam o pesquisador de significações variadas que invariavelmente produzem manifestações.

O suicídio parece participar dessa categoria de fenômeno quando encontra um sujeito que não é capaz de historicizar os significantes que lhe chegam às torrentes. “Quando a indução significante não causa uma resposta subjetiva Lacan refere-se a uma espécie de bloqueio, de congelamento do significante no corpo, um curto circuito que será responsável pelas manifestações corporais”. 

Estudar o suicídio em campo e mesmo tratá-lo teoricamente requer uma atenção a estes efeitos de indução, principalmente pela razão de que ela é um fenômeno inconsciente. Nas palavras de Valas: O ser do sujeito fica então submetido ao discurso do outro, do qual ele não pode se esquivar esvaecendo-se como sujeito dividido pelo significanteSem perceber, o pesquisador pode estar submetido a uma série de significantes que podem constituir idéias que o coloquem em verdadeiras situações de risco.

Patrick Djian escreveu: “O heroísmo fascina”. E mais: “Mitos, contos, religiões, literatura contam as vidas de seres excepcionais que realizam os fantasmas de gozo e de onipotência que nos anima. A cada um de seus heróis, publicamente ou num teatro íntimo. Freud tinha os seus: Aníbal, Moisés, Édipo…

Parece-nos que uma condição é necessária para que eles possam exercer plenamente um poder de captação imaginária: morrer.” Esta citação serve para a aproximação que tento estabelecer ao propor que os suicidas, em muitos casos, acabam exercendo esse fascínio de captação imaginária ou identificação quando seu gesto os tornam seres excepcionais. E basta um pouco de querer ou mesmo alguma contingência para que o excepcional se torne um herói.

Ainda Djian: “O prazer e os calafrios ligados a essas identificações respondem bem a uma tentativa, por procuração, de se aproximar daquilo que aterroriza o homem: o gozo e a morte, aquilo pelo que, justamente, o significante falha”.

Roberto DaMatta diz que a Antropologia toma como ponto de partida a posição e o ponto de vista do outro, estudando-o por todos os meios disponíveis para compreender a lógica dessas formas diferenciadas de vivenciar os fatos sociais e para isso o antropólogo vai a campo realizar suas pesquisas. Diz ele: “É ali que ele pode vivenciar sem intermediários a diversidade humana na sua essência e nos seus dilemas, problemas e paradoxos. Em tudo, enfim, que permitirá relativizar-se e assim ter a esperança de transformar-se num homem verdadeiramente humano”.

É nesse sentido que DaMatta vai entender o trabalho de campo como um ritual de passagem, transformador. O trabalho de campo na Antropologia se aproxima de um rito de passagem. Durante a pesquisa somos retirados (ou nos retiramos) de nossa sociedade e ficamos à mercê, contando com os próprios recursos. Depois retornamos e relativizamos as experiências entre as duas sociedades. “Antropólogos e iniciados atualizam um padrão clássico de morte, liminaridade e ressurreição social”. (grifos meus) 

Quando se tem a morte enquanto tema de pesquisa ressalta-se a importância do valor ritual associado ao trabalho de campo. Quando a morte de que se trata é o suicídio a importância da palavra passagem se destaca ainda mais do conjunto. 

Mas, como bem lidar com o paradoxo de que o objeto de estudo nesses casos é alguém que cruzou a fronteira e faz parte do Outro mundo? (Da Matta) 

Que não se queira ir atrás dos sujeitos (objetos) de estudo estejam eles lá onde estiverem de acordo com o mundo cosmológico dos seus. Menos do que uma advertência que pode parecer ingênua e até cômica, ela guarda algo de importante: a força da indução significante, a identificação (captação) imaginária e o fascínio pelo herói.

Não há como ignorar a relativa proximidade que cada um tem com a idéia da morte. Mais uma vez Djian: “Encontramos ai (no suicídio) ao mesmo tempo algo horrível e assustador que toca nossa relação com a morte, mas também qualquer coisa de fascinante e íntima, que responde bem a esse comércio familiar que todos mantemos, pouco ou muito, com a idéia do suicídio”.

Se o que se destaca aqui é algo que escapa à consciência, a contribuição da Psicanálise para o pesquisador de campo na Antropologia, que tem no suicídio seu tema de trabalho, pode ser expressa nos seguintes termos, conforme Djian: “Que o inconsciente não conheça a morte, segundo a célebre asserção freudiana, não é absolutamente contraditório com o fato de que possa ser o agente dela”.

Outra questão importante e que pode favorecer o fascínio em relação ao suicídio é que em muitos casos o suicida realiza com sua morte uma série de coisas que não pode fazer em vida. Essa característica marcante confere ao ato algo da ordem de uma realização carregada de êxito. Esse sucesso parece contribuir para a heroicização do ato suicida. 

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