Maria chegou falando que a moça que lhe faz as unhas arrancou um bife de seu dedo. Isso a fez lembrar da grande sensibilidade que tinha nas extremidades dos dedos quando era criança. Falou também da crise de asma que sua vizinha teve em sua presença e que tal fato a fez começar a tossir sem parar. Ao descrever a cena da crise de asma, colocou a mão no pescoço e subitamente sentiu falta do colar que sempre usa. Herança de sua mãe. Ouro puro. Durante trinta anos observou o colar naquele pescoço. O pescoço enrugou e o colar parece ter ficado mais bonito a cada ano. Agora o colar é seu. Maria fica toda excitada quando tocam seu pescoço. Mais que o normal. Aliás, basta que a palavra pescoço seja mencionada para que logo ela se agite. Para cortar os cabelos tem antes que pedir para não tocar seu pescoço.
Antes da moça lhe arrancar um bife, Maria esteve no banco para pagar a conta do telefone. É um de seus passatempos preferidos. Ficar horas e horas ao telefone. Gosta de ouvir histórias, de qualquer história. De contar histórias também. Até parece que seus ouvidos ficam alegres quando se aproximam de um telefone. No banco havia uma fila enorme e Maria teve que ficar em pé esperando sua vez. Logo começou a conversar com a pessoa que estava na sua frente. Ah, Maria gosta muito de falar. Fala, fala. Nem sempre diz muitas coisas que se aproveite, mas ela fala. Quer saber do que falaram na fila? Pois bem, Maria reclamava de ficar em pé até a chegada à boca do caixa. Reclamar era já uma tradição em sua família. Sua mãe reclamava das dores nas pernas, sua avó também e pelo que ouviu dizer até sua bisavó!
Por fim Maria pagou a conta do telefone e ao sair do banco em vez de tomar o caminho à esquerda tomou logo o da direita. Após andar duas quadras caiu em si e perguntou-se para onde estava indo. Riu e pensou consigo mesma que deveria estar ficando louca. Mal podia conter a vontade de chegar em casa e logo contar isso para sua prima, pelo telefone.
Esqueceu completamente disso em virtude de uma dor de barriga. Após um demorado banho Maria foi preparar o jantar. Nesse dia faria uma sopa de cogumelos para acompanhar um joelho de porco assado, especialidade de seu falecido pai. Por um instante lembrou de suas dores nas pernas. Mas logo chegaram os filhos e o marido e ela continuou seus afazeres. No quarto, Maria não quis transar com seu marido, teve um pensamento e, virando de costas, lhe disse: às vezes parece que somos parentes.
Você pensa que as linhas acima são apenas a descrição de mais um dia na vida de Maria? Um dia como tantos outros? Pois essa história serve para mostrar que em todos os momentos estamos de alguma forma atendendo aos apelos do corpo. Estamos falando do corpo, estamos reclamando do corpo.
Podemos perceber que Maria está descrevendo a forma que a sexualidade se constitui em seu corpo. Observe cada atitude sua, a cada instante. Quantas partes do seu corpo estão sendo utilizadas e quantas satisfações estão sendo produzidas? O corpo é conduzido por uma linguagem que na maioria das vezes não se entende. Produz estranhamento. Trata-se da linguagem do inconsciente. Trata-se de um sujeito inconsciente. O outro em nós.