O que mais se vê e menos se enxerga são os corpos. Um sentimento chamado estranho surpreende quando algum corpo (o corpo do outro) se impõe ao olhar e gera pensamentos. Pois há corpos que falam mais que outros. De qualquer forma, todos falam. E essa fala não é puramente corporal, como se pretende. É uma fala constituída por letras, símbolos, idioma, alfabeto, ainda que se resuma expressar-se por gestos.
Pois bem. Desconsiderar a expressão de uma linguagem nos gestos humanos leva a enganos sérios. E um deles é supor que o corpo por si só fará emanar a saúde psíquica. É a falácia do corpo são e mente sã. Uma divisão impossível. O corpo, esse estranho que nos faz lembrar tantas coisas. Às vezes se mostra de formas tão estranhas, que pensamos como sujeitos podem portá-los. Produz incômodos, doenças, tonturas, líquidos, fluidos, gosmas, odores, prazeres, ascos, euforias, alegrias, aconchegos, afagos, pedidos, necessidades, vontades, por vezes quer estar onde não queremos, outras se contenta em estar onde queríamos outra coisa. Como Lacan disse: o corpo deveria deslumbrá-los mais.
Para além e aquém do que o corpo de forma autônoma faz conosco, há aquilo que fazemos com o coitado. Parecem duas posições definidamente diferenciadas, você e o corpo? Pois bem, não há como separá-los. As razões são variadas.
Conheci um sujeito que caminhava e não havia ginga em seu andar. Suas pernas pareciam não ter as dobradiças do joelho. Seus braços não balançavam ao caminhar, eram duros junto à coxa. As mãos bem abertas, revelando uma fixidez dos dedos que pareciam também não possuir articulações. O pescoço não possuía mobilidade de forma que, para olhar para os lados, todo o corpo precisava também acompanhar o movimento. Sua voz de tão baixa quase não se ouvia palavra.
Esportes não praticava, namorar nem pensar, ambos devido à sua vergonha. Sua inibição chegava ao ponto de corar diante de qualquer palavra que, ainda que muito de longe, lembrasse algo relativo ao sexo. Piadas não contava e preferia não ouvir para ficar distante do riso. Sua vida estava restrita aos domínios do seu quarto, muito embora não houvesse fechadura porque sua mãe não queria. Ela teria que entrar no quarto quando bem entendesse pois ali era ela quem mandava. Era essa a configuração quando esse sujeito foi trazido ao meu consultório para iniciar um processo de análise. Aos poucos ele foi revelando as palavras de ordem em seu ambiente familiar. Palavras dirigidas a ele: Não faça!, Você não pode!, Isso é pecado!, Você vai apanhar se fizer isso!, Isso é sujo! além de outras tantas.
Pois essas palavras formaram o contorno do corpo desse rapaz, encalacrando-se nas funções corporais e impedindo sua realização. Conforme vinha para suas sessões o trabalho foi avançando e ele começou a se soltar das amarras de uma linguagem imobilizante. Sua vida está muito diferente. Tem amigos, pratica esportes, dança, viaja e na sessão de hoje me comunicou, contente, que sua namorada está esperando um filho. Ele vai ser pai.
Sim, as palavras ditas e escutadas têm poder transformador.