Escrevi um conto.
Virna não era linda. Apenas bonita. Cega de nascença. Cresceu. Não tinha amores. Nunca os teve. Quem namoraria uma cega? Não eram os outros, ela é quem pensava isso. Seu corpo não era feio. Curvas bem definidas. Não era moça pobre. Nem rica. Seu pai era gerente de banco há anos. Sua mãe era professora primária. Escola pública. Tantos anos na profissão lhe renderam bom salário. Tinham uma empregada. Mais que isso. Era quem cuidava da Virna. E lia para ela muitos livros. Virna lia os livros com os olhos da empregada que nunca entendia o que lia. Era Virna quem explicava.
Virna queria trabalhar. Conseguiu um emprego de telefonista. O telefone era fácil. Imobiliária. Das grandes. O dono era o Pedro. Era doutor Pedro o que dizia ela. E dizia várias vezes porque ele recebia muitas ligações. De mulheres. Deveriam ser locatárias, achava ela. Eram amantes. Quando este pensamento lhe ocorreu, Virna ouviu o bom dia de Pedro com outros ouvidos. Sua voz era um pouco rouca. Como não reparara? Surpreendeu-se quando sentiu que a voz dele parecia fazer cócegas no seu ouvido. De manhã, não via a hora de Pedro chegar para ouvir bom dia.
Durante anos este foi seu único prazer. Seu único gozo consistia em um roçar da vibração das palavras bom dia. Um dia uma voz lhe perguntou: Por quê te contentas com tão pouco? Olhou para os lados. Esqueceu que era cega. Perturbada, não conseguiu trabalhar direito aquele dia. Boa noite, ouviu Virna na manhã do dia seguinte. Boa noite? Às dez horas da manhã? É. Pedro se enganara. Entrou na sua sala, o Pedro, abriu e fechou as gavetas. Estava também perturbado. Por quê troquei bom dia por boa noite? perguntou-se. Surpresa! Pedro queria que fosse noite. Para estar sozinho com Virna no escritório. Descobriu que a desejava. Mas não podia. Ela não era normal. Era cega. Por mais cafajeste que fosse com todas as mulheres, com Virna não poderia. Mas desejava. Tanto que a partir daquele dia passava horas olhando, bem quieto, para Virna. Seu corpo. Seus seios. Suas pernas. Às vezes pensava, tinha quase certeza que ela olhava o que ele estava fazendo. Tinha a certeza de que ela se insinuava para ele. Abria as pernas, mordia os lábios, passava a mão nos seios, mexia os olhos para os lados, esboçava sorrisos. Estremeceu quando lembrou que um dia lhe disseram que o corpo percebe coisas não só pelos olhos. Sentiu-se culpado.
Virna já não se contentava mais só com o bom dia. Começava agora a imaginar como seria o Pedro. Sabia que era sedutor. Que não era velho. Que tinha um andar firme. Que usava perfume de homem. Conhecia bem seu cheiro e agora isso lhe dava prazer. Já não era só o ouvido que gozava, seu nariz também.
Quanto a Pedro, apenas seus olhos gozavam. O amor é assim. Cada um goza com aquilo que pode. Com a parte que pode. Pedro a amava. Mas não poderia amá-la porque ela era cega. Virna o amava, mas não poderia amá-lo porque ela era cega. Assim não se amavam. Só se desejavam.
O fala de duas pessoas e os (des)caminhos que criaram uma forma de relacionamento marcado por um não-encontro.
No conto há uma clara referência à pulsão, ao corpo enquanto zona erógena e à parcialidade do corpo no que se refere ao prazer sexual. Mas o que quero mais chamar atenção aqui é algo que muitas vezes passa sem ser notado. É a importância da fala, da palavra, do diálogo. Vejam que apenas uma palavra dita por um ou pelo outro teria o efeito de mudar radicalmente o curso da história deles. É esse mutismo do ser falante no que se refere à sexualidade que causa a inibição, o sintoma, o preconceito, as suposições sobre o outro, sobre o que o outro pensa, sobre o que o outro é.
Ora, só o sujeito pode falar por si. Somente um sujeito pode posicionar-se diante algo, no que ele fala. Supor algo sobre o outro, não marcado pela fala e pelas palavras deste outro, é do campo do delírio. Deliramos quando achamos que sabemos algo sobre o outro. Deliramos quando supomos que o outro gosta disso ou daquilo sem que ele tenha se posicionado. Lacan tem uma frase que diz que saber o que o outro quer não é uma prova de amor. Muito pelo contrário, é nesse momento que destruímos a possibilidade de o outro se expressar, de ser, de falar. Pedro supôs que Virna não poderia ser amada porque era cega. Virna supôs que Pedro não a amaria porque ela era cega. Assim, não se amaram. Se tivessem eles se permitido atravessar pelo campo das palavras e nomeado seus desejos poderiam…
Um outro elemento importante que quis destacar no conto é que de alguma forma sempre escapa algo que denuncia um desejo. Quando Pedro diz boa noite em vez de dizer bom dia, fica claro o desejo inconsciente se impondo e pedindo para ser nomeado. Ele a deseja. Porém, nega seu desejo ao supor que Virna não pode ser amada. Por outro lado, Virna escuta o boa noite de Pedro e de alguma forma poderia amarrar esse tropeço e produzir ali alguma significação. Não o faz, rechaça também sua estranheza e deixa de colocar ali alguma palavra que faça sentido.
Muitas vezes fazemos isso com nossas vidas, deixamos de escutar ou negamos o que escutamos. Pagamos, por certo, o preço da surdez que tantas vezes nos é conveniente para continuarmos a ignorar o que somos.